XXXII - Jam Satis Est

Estava decidido. Iriam voltar a Roma e iram terminar isto tudo. Plínio já estava farto de andar para trás e para frente, logo ele que adorava viajar. Queria assentar, ter ursinhos de peluche, perdão, filhos, deixar crescer ainda mais a barba e dedicar-se pura e exclusivamente a enganar as pessoas com retórica incoerente, perdão, a iluminar o povo com filosofia.
Sem Salvadorus alem da óbvia perda de força em combate, perdiam também em termos estratégicos, pois Salvadorus era um verdadeiro Sun Tzu romano.
Secaram-se, sacudiram as roupas e caminharam até a aldeia mais próxima, onde conseguiram arranjar uma carroça para os levar de novo para Roma. Combinaram encontrar-se de madrugada, assim que os primeiros raios de sol fossem visíveis no horizonte, para seguirem o seu caminho. Cada um aproveitou a noite para fazer meditar. Plínio recordava-se de Salvadorus, e jurava vingança. Edgar treinava feitiços enquanto Gaius resolvia complicadas equações sobre a possibilidade de Geraldus vir a assentar. Já Geraldus, foi atraído para uma clareira num bosque ali perto, por uma luz verde. Era Diana, a Deusa da Caça.
- Geraldus…
- Sim, Deusa.
- Já passaram meses e meses. Nada está resolvido. Roma ainda está entrega a César, Viçosus e aos outros asquerosos.
- Então isso tem uma explicação, ora bem, então é o seguinte…
- Silêncio! – Interrompe a Deusa. – Tens uma semana, Sancto Geraldus, uma semana.
- Mas, Deusa, sejamos realistas! Não temos a mínima hipótese! O Salvadorus foi-se, o Menditus está casado e gordo, o Plínio só pensa nas filosofias, o Edgar e o Gaius já tivera melhores dias, dos heróis só sobro eu. Tudo bem, Deusa, tudo bem. Já sei que vai dizer ah e tal mas só o Geraldus chega, mas deixa-me que a corrija. Só eu não chego.
- …
- E há mais.
- Há?
- Há. Repare, Deusa, Deusinha, se a posso tratar por Deusinha…. Precisamos de algo em grande para conseguirmos esta façanha…
- Algo em grande tipo o quê?
- Sei lá, tipo… Assim só por alto, só uma ideia… Eu transformar-me numa espécie de anjo na terra, com o poder da cura!
- Ah. Estou a ver. Queres ser tipo um anjo na terra com o poder da cura e da resolução de querelas entre habitantes do interior americano, tipo Michael Landon?
- Tipo quem?
- Esquece.
- Hmmmm… Mas posso ter esse poder?
- Bem, pode ser. Mas, tem cuidado com esse poder. Não deixes que te controle.
- Ora essa, eu aguento. Manda vir! Quero dizer, se faz favor oh Deusa!
- Toma… – A deusa une as mãos acima da cabeça e cria uma bola branca, com uma luz de tal intensidade que Geraldus teve de fechar os olhos.
A bola viaja pelo ar e penetra no corpo de Geraldus, e agora eram as suas mãos e os seus olhos que brilhavam
- Oh… Oh Deusa..: Eu sinto-me poderoso e tal, mas isto vai brilhar sempre assim? É que eu para dormir bem tenho que estar na escuridão total!
- Isso passa Até à próxima, Geraldus, e para teu bem que a próxima vez seja para festejar a vitoria em Roma!
- Assim será, oh Deusa!
Geraldus voltou para o aldeamento, para tentar descansar um pouco antes de seguirem para Roma.
Tal como tinham combinado, assim que os primeiros raios de sol surgiram, envergonhados, rompendo pelo horizonte, encontraram-se junto à fonte que se encontrava bem no centro da aldeia.
- Então, tudo pronto para a viagem? – Diz Geraldus, sorridente.
- O que é que te deu? – Pergunta Plínio, desconfiado.
- Nada, nada. Estou apenas bem disposto. Ou um homem já não pode estar bem disposto pela manhã?
- Pode. Mas eu estava a falar contigo, essa parte do homem não encaixa.
- Já vi que estamos engraçadinhos logo pela manhã.
. Vá, vocês os dois acalmem-se e ajudem a carregar os mantimentos. – Intervém Gaius.
Iniciaram a viagem, calmamente, aproveitando para conversarem e tentarem, de algum modo, pensar num plano que pudesse levá-los ao sucesso.
Lembraram-se, e bem, de deixar a carroça ainda longe da cidade, usando o sistema de esgotos onde lutaram com a hydra, para ir até à biblioteca de Menditus e aí conseguirem partir para a ofensiva.
Menditus ficou desfeito quando viu o estado em que se encontrava a sua livraria. Tinha sido pilhada e vandalizada. Ficou desfeito, mas assim que a sua esposa anunciou que iria aproveitar para se banhar nos seus aposentos especiais, ele esqueceu logo tudo.
Gaius contactou Juristus, que ainda se encontrava infiltrado junto de Júlio César, e qual não foi o espanto deste quando Juristus lhe disse que Salvadorus estava vivo e tinha resistido aos ferimentos, encontrando-se preso em Alcatrazius, uma prisão de alta segurança ao largo de Roma, numa pequena ilha.
- Mas isso é fantástico! – Diz Plínio, entusiasmando.
-É notável… - Acrescenta Edgar. – A sua resiliência é desumana, é um semideus este Salvadorus.
- Mas, não se excitem demasiado. – Gaius parecia preocupado. – o Juristus disse-me que ele está em perigo de vida se não for curado rapidamente.
- Temos de agir de imediato! – Plínio não conseguia esconder o desejo de vingança.
- Calma, Plínio, calma… Não acredito que Juristus tenha recebido esta informação por acaso. Deve ser uma cilada.
- Ainda assim… Não podemos deixar o nosso companheiro para morrer! – Plínio deu um murro na mesa. Vamos para lá já!
Não valia a pena tentar impedi-lo. A determinação dele era inigualável. Preparam-se o melhor que conseguiram, reuniram as poucas armas que ainda tinham, e rumaram a Alcatrazius.
Edgar conseguiu conjurar um feitiço potentíssimo, que tornou-os a todos, e até ao barco em que viajavam, invisíveis.
- Oh Edgar, porque é nunca te lembraste disto antes? – Geraldus não escondia a sua satisfação em estar invisível. – O que eu podia já ter feito e visto, especialmente visto, se tivesse este poder. Mas isto é maravilhoso!
- …
- Nem num momento de tensão destes tu deixas de dizer parvoíces, oh Geraldus. – Responde Menditus.
- Tem calma Menditus, vais ver que tudo corre bem. Aliás, eu tenho a certeza. Tenho um truque na manga. Na manga não, na mão mesmo.
- Não me digas que hoje à noite recebeste uma visita da senhora Palma e das suas cinco filhas…
- Não, nada disso. Quer dizer, isso também. Mas não é a isso que me estou a referir.
Chegaram à margem da prisão, e tal como nos mapas que conseguiram arranjar, já encontraram a entrada do esgoto que os levaria à cela de Salvadorus.
- Agora temos de ter cuidado, o feitiço de invisibilidade desaparece assim que entrarmos nos esgotos. – Avisa Edgar, enquanto ajuda Plínio a descer do barco.
- Tudo bem. Tu e o Gaius fiquem aqui atentos e preparados para fugir caso as coisas corram mal. Connosco ou sem nós, se os archotes daquela torre mais alta forem apagados, abandonem a ilha e digam ás nossas caras metades que o nosso amor é eterno.
- Oh Menditus, mas só tu é que és casado.
- Ah ok, então esquece lá os outros e diz isso à minha esposa.
Plínio, Geraldus e Menditus entraram pelos esgotos e foram procurando as saídas certas, para conseguirem chegar à cela de Salvadorus. Estava tudo calmo. Conseguiam ver as rondas dos guardas, estes pareciam não suspeitar de nada. Se fosse tudo planeado, eles deveriam apresentar alguns sinais de nervosismo, mas, à primeira vista, pareciam estar descansados. Teriam de ser rápidos, pois a fuga teria forçosamente de ser feita durante a noite, para serem protegidos pela escuridão. Chegaram á cela onde estava Salvadorus e ficaram impressionados com o estado em que este se encontrava. Olharam para os seus olhos e viram que aqueles eram os seus últimos instantes de vida.
Soltaram a grade que dava acesso ao esgoto e Geraldus ergueu-se e ficou frente a frente a Salvadorus. Geraldus ficou a olhar para ele, enquanto puxava as mãos atrás.
- Porque é que ele não o desata?! – Plínio estava bastante nervoso.
- Não percebo! O que é que ele está a fazer?!
Os dois tentavam chamá-lo baixinho, temendo ser ouvidos, mas não estava a resultar. Nisto, surge uma luz esverdeada que os encadeia momentaneamente. Era a Deusa Diana.
- Deusa, vejo que vieste em nosso auxílio! – Exclama Geraldus.
- Sim. Agora Geraldus, usa o teu poder em Salvadorus. Cura-o, meu anjo.
Geraldus elevou os braços acima da cabeça e depois tocou em Salvadorus. Nada aconteceu. Tentou novamente e única reacção foi um gemido gutural de Salvadorus, acompanhado de uma queda de sangue
- Então Geraldus? Cura-o. O quê? Não consegues? Oh… - Disse a Deusa, num tom jocoso.
- Mas…
- Mas o quê? És tão ingénuo. Achavas mesmo que eu te ia dar assim o poder sem mais nem menos? Agora tenho de a ti e aos teus companheiros onde eu quero!
- Não sabes o que dizes. Eu estou sozinho.
- Ah sim? – A Deusa ergue os braços e faz Menditus e Plínio levitarem através do buraco do esgoto. – Já terminaram o vosso namoro?
Plínio tenta atacar a Deusa mas é impedido por Menditus.
- Acalma-te, Plínio, não vale a pena.
- Pronto, agora que estão todos aqui deixem-me chamar o convidado especial de hoje à noite…
A Deusa estalou os dedos e surge Viçosus, com o seu habitual cheiro a enxofre e capa negra.
- Parece que a colheita foi boa, não foi Deusa? – Diz Viçosus, enquanto sai um liquido verde do canto do seu lábio. – César vai ficar radiante.
- Diz-me, Deusa, o que ganhas com isto?
- É simples, Menditus. Com a ajuda de César e dos seus exércitos, vou conquistar a Grécia e destruir todos os templos dos Deuses, erguendo, no seu lugar, templos em minha honra.
- E o que é que César ganha com isso?
- Ganha mais uns territórios. Ele contenta-se com pouco. Mas porque é que eu ainda me dou ao trabalho de falar com vocês? Viçosus, acaba com eles
Quando Viçosus ia desembainhar a espada, Geraldus voltou a erguer as mãos acima da cabeça.
- O que é que ele está a fazer? – Pergunta Menditus a Plínio.
- Não faço ideia.
A Deusa parecia surpreendida.
- Então magricelas, o que é que estás a fazer? Eu já te disse que não te passei quaisquer poderes.
Geraldus concentra-se e as suas mãos começam a brilhar.
- Eu. Já. Te. Disse. Que. Sou. Um. Anjo!
Geraldus põe as mãos no peito de Salvadorus e este tosse violentamente e solta-se das correntes que o prendiam. Dá dois passos e toca em si, sentido as feridas a currarem.
- Não pode ser, não pode ser… - A Deusa evidenciava algum desespero
Viçosus lançou a sua espada na direcção de Plínio.
- Morre traidor! – Bramou a sinistra figura.
Salvadorus salta na direcção da espada e apanha-a em pleno voo.
- Hoje não! – E lança a espada na direcção de Viçosus, trespassando-o sem misericórdia.
Viçosus salta para trás, e jorra sangue para todos os lados.
- Não! – A Deusa estava definitivamente assustada. – Isto não foi o nosso ultimo encontro. Vão pagar por isto!
E desaparece numa nuvem de fumo.
Com este barulho todo os guardas já estavam a rodear a cela. Salvadorus, como se sentindo imortal, irrompe em direcção aos guardas, imobilizando-os em três tempos, com uma mistura de movimentos ninja com truques de crochet e até, para espanto de tudos, ponto cruz.
- Vocês salvaram-me! Estou em divida para convosco.
- Deixa lá, - Diz Plínio. – Pagas a dívida mais tarde. Agora temos de fugir!
Apressaram-se pelos corredores, limpando guardas à esquerda e à direita, chegando sãos e salvos ao barco, onde Edgar já tinha tudo pronto para eles partirem.
- Estava a ver que nunca mais!
- Segue Edgar, segue! – Grita Menditus.
Despacharam-se a tempo, conseguindo escapar por pouco às setas envenenadas dos guardas das torres. Ao chegarem a terra, Plínio afastou Geraldus do grupo.
- Geraldus, como é que fizeste aquilo?
- Plínio, eu sempre te disse que era especial. Que podia entrar no Heroes.
- Podias entrar onde?
- Agora não interessa. Vês? Sou um anjo. Consigo curar tudo. Vês aquela planta morta?
- Sim.
- Observa. – Geraldus estica as mãos e a planta levanta-se.
- Assombroso…
- De facto.
- Mas a Deusa não tinha dito que não te tinha passado os poderes?
- Tinha. Mas este poder parte do meu interior. Sou um anjo. Um brilhante anjo.
- …
Juntaram-se todos e planearam o que iriam fazer a seguir.
- De certeza que a Deusa já contou a César o que se passou, vai ser complicado chegar ao palácio - Diz Menditus.
- Não te preocupes… Penso que iremos ter um apoio de peso… - Diz Plínio, de forma enigmática, perante o olhar incrédulo dos seus companheiros.

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