XXX - Cantilenam Endem Canis

Tinham preparado tudo ao milímetro. Todos trabalhavam para ajudar aquela aldeia a defender-se da ameaça romana. Todos, menos, obviamente, Sancto Geraldus.
- Olha, só assim naquela da amizade, - diz Plínio. – não vais ajudar-nos a defender a aldeia? Queres que morra toda a gente?
- Tem calma.
- Calma? A minha ética não me permite ter calma numa altura destas. Está em jogo a vida de demasiada gente.
- Sabes, - Diz Geraldus, enquanto se sentava numa carroça carregada de pedras. – tu preocupas-te demais.
- Andaste a snifar água com sal outra vez não andaste? Eu bem disse ao Menditus para não te ensinar essas coisas, mas aquele gajo não aprende!
- Por acaso até andei, mas sempre é melhor do que enfiar um regador de jardim no nariz...
- Então, a discutir outra vez os vossos problemas nasais? – Interrompe Menditus.
- É aqui este gajo que não ajuda. – Diz Plínio, apontando para Geraldus. – É que nem que fosse por uma questão ética, ele tinha de ajudar estes pobres lusitanos!
- Oh Geraldus, então não nos dás uma ajudinha? – Inquire Menditus.
- Tenham calma...Já vos disse para terem calma.
- Pronto, é só isto que ele sabe dizer, eu já não sei o que fazer. – Acrescenta Plínio, descrente.
A verdade é que as horas foram passando e os romanos teimavam em não aparecer. Salvadorus estava à porta, com três espadas, dois escudos, uma lança, um arco com flechas, dois doses de frango e um sundae de chocolate. Tinha de estar preparado.
- Ora bem, nós somos, deixa cá ver, três, mais os que viemos de Roma, oito, mais aqueles que vêm ajudar da aldeia ao lado, ora bem, três vezes doze, exacto, somos, exactamente, muitos. Aliás, para lá de muitos! – Diz Salvadorus, confiante.
- Ainda bem que estás confiante, Salvadorus. – Intervém Menditus. – Mas quer me parecer que os romanos não vêm hoje.
- Eu preocupo-me mais com a dama do bigode.
- Então, ela tem te perseguido?
- Tem, e o pior de tudo é que eu fico vidrado no decote e depois ignoro o buço.
- Tu e os decotes...
- Qualquer dia ainda me desgraço à conta de um decote...
Entretanto, a meio da aldeia, Plínio andava para trás e para a frente, incapaz de conter o seu nervosismo.
- Mas como é que este gajo até para uma luta chega atrasado e... Olha, lá vem ele. Oh Geraldus! Mas isto são horas?!
- Tinha de dormir...
- Tinhas de dormir? E se os romanos aí viessem e te matassem no sono.
- Descansa. Eles não vêm.
- Como sabes? Ah, espera, sonhaste com isso foi?
- Não. Recebi a informação de uma fonte privilegiada. Aliás, eu próprio tive grande influência neste desfecho. E só te digo que a hora de voltarmos para Roma aproxima-se rapidamente.
- Mas... Como?
- As Caves de Alcoitonius.
- As Caves de Alcoitonius?
- As Caves de Alcoitonius...
- Ah, as Caves de Alcoitonius... O que é isso? – Pergunta Plínio.
- Uma ancestral sociedade secreta da qual o teu caro e inigualável mestre faz parte. Aliás, há quem diga que este teu professor da arte da luta é, efectivamente, o presidente dessa mui nobre e secreta associação.
- Nunca tinha ouvido falar.
- É natural. Dai o “secreta” no nome.
- Ah, isso explica muita coisa.
- Nunca te tinha contado isto antes por razões que não te posso contar.
- O quê?
- Nada. Agora foi a altura certa para te contar. Se mostrar que mereces, levarei te até às Caves de Alcoitonius.
- Espera lá, isso não é como da outra vez em que me levaste para a cave e depois querias mostrar-me o teu músculo dorido, pois não?
- Não, não...
- Ah bom.
Salvadorus continuava atento na frente da aldeia, e estava prestes a receber o chefe da aldeia.
- Salvadorus...
- Sim, grande chefe.
- Diz-me, os romanos não vêm pois não?
- Aparentemente não, chefe.
- Será que conseguimos safar-nos através de meios diplomáticos?
- Não sei, mas com o Geraldus e o resto do pessoal, já espero tudo.
- Quero recompensar-vos pela vossa ajuda, de qualquer forma.
- Nós agradecemos.
- Diz-me só mais uma coisa, oh grande guerreiro Salvadorus.
- Claro, chefe.
- Aquele magricelas, das carótidas salientes...
- O Geraldus.
- Sim, esse... Ele não ajudou muito pois não?
- Mas está a perguntar-me?
- Sim.
- Mas está a perguntar-me a mim directamente?
- Estou.
- Mas está a perguntar-me a mim directamente com a intenção de quem faz um pergunta esperando obter uma resposta para a supracitada pergunta, não tendo porém segundas intenções tais como enganar um pobre guerreiro, está a perguntar-me exactamente o que as suas palavras querem dizer, a mim mesmo?
- Estou.
- Mas tem a certeza que quer saber a resposta para a pergunta que me foi dirigida directamente por si para mim, à qual eu irei dar uma resposta à pergunta que me foi dirigida directamente por si, para mim, para si?
- O quê?
- Bem me pareceu! Você quer-me enganar!
- ...
- Não, não trabalhou muito. Mas parece-me que ele foi fulcral nesta situação toda, sabe?
- Ai sim?
- Eu ouvi-o a dizer que ia para uma reunião para resolver este imbróglio porque, passo a citar, “não me apetece lutar”.
- Então mas ele não é um guerreiro? – Pergunta o chefe, confuso.
- É. – Responde Salvadorus. – Mas também é livreiro e nunca o vi arrumar um livro. Por isso...
Edgar, Gaius, Menditus e Geraldus iam arrumando as coisas para voltar a Roma.
- Acreditem em mim. – Diz Geraldus, perante a desconfiança dos seus amigos em voltar para Roma.
- Eu só acredito em ti, - Responde Plínio. – Porque é eticamente necessário.
- Eu tenho as minhas dúvidas. Mas já aprendi a fazer o que tu dizes porque tu ages de maneiras muito misteriosas, mas eficazes. – Diz Menditus.
- Palavras sábias, Menditus. – Diz Geraldus.
- O Juristus já foi andando na sua Carroça de 3 cavalos, no sentido de tratar dos trâmites legais do nosso regresso. Penso que ele irá conseguir com que deixem de nos perseguir pelo menos durante os primeiros dias. – Acrescente Geraldus.
- Eu e o Gaius ficaremos a tomar conta da livraria e serviremos como apoio às vossas acções. – Diz Edgar.
- Obrigado. – Diz Menditus. – Mas, Geraldus, quais serão as nossas acções?
- Eu, tu, o Plínio e o Salvadorus temos grandes feitos à nossa espera. E sei que não iremos desiludir a Deusa. Até porque ela é, lá está, uma Deusa, e tem poderes mágicos. E ela pode encolher coisas, e fazê-las desaparecer. Se é que me entendem. E eu prezo muito a minha masculinidade. Aliás, já vos disse...
- Sim, que és extremamente bem dotado e que serás uma dádiva para a rapariga que te tomar como sua esposa, - Dizem os outros todos em uníssono. – e que és desproporcionalmente dotado e que, durante a tua infância, pensavam que era uma doença, que tinhas uma perna extra.
- Vocês conhecem-me tão bem.
Reuniram-se todos na praça da aldeia, fizeram as despedidas necessárias e fizeram-se ao caminho.
- Oh Geraldus, explica-me lá bem aquilo das Caves... – Diz Plíno, durante o caminho.
- Agora não posso, há demasiada gente a ouvir...
- Mas são os nossos amigos...
- Eu não tenho amigos...
- Achas isso eticamente aceitável?
- Olha, como é que se chamava o teu professor de ética, em Atenas?
- Eticus Augustus, o Ético, porquê?
- Nada, nada. – Diz Geraldus, tomando umas notas.
Já nos arredores de Roma aproveitaram para parar.
- Temos de parar Geraldus, os animais têm de descansar! – Grita Menditus, da carroça da frente.
- Anda lá oh Menditus, o Plínio aguenta!
- Eu estou a falar dos cavalos.
- Ah bom, então paremos.
E assim o fizeram, pararam junto a um lago e aproveitaram para se refrescar. Plínio ouviu um barulho estranho vindo detrás de umas árvores e foi investigar. Quando viu o que era, Plínio não queria acreditar na sua sorte. Era a rapariga de Roma!
- Olá, - diz Plínio, envergonhadamente. – Lembras-te de mim? Nós discutimos sobre filosofia e psicologia em Roma...
- Sim, lembro-me. Afugentámos aqueles ladrões...
- Nem mais. Ah, que cabeça a minha, sou Plínio Plagius, o famoso gladiador filosofo escritor filantropo.
- Venusiana... – Diz a rapariga, esticando a mão para Plínio. Este dá-lhe uma palmada.
- Tá-se bem, io e tal, se é assim que curtes as cenas, man. Então, que estás aqui a fazer?
- Moro aqui perto...Estou a aproveitar a calma dos bosques para trabalhar.
- E o que estás a fazer?
- Estou a corrigir uns livros...
- Ah, sabes que eu sou escritor?
- Já o mencionaste, juntamente com a parte do gladiador, filósofo e mais não sei o quê.
- Ora lê isto, e diz-me o que achas.
Plínio entrega-lhe umas tábuas e fica encostado a uma árvore na sua já famosa pose de leão. Venusiana começa a ler em voz alta.
- “Se decidi atravessar a rua e entrar na loja, deve ter sido porque, secretamente, queria recomeçar a trabalhar - sem o saber, sem ter consciência da fome que se tinha vindo a acumular dentro de mim. Não tinha escrito nada desde que saíra do hospital em Maio - nem uma só frase, nem uma só palavra - e não sentira a menor inclinação nesse sentido. E eis que agora, sem mais nem menos, ao fim de quatro meses de apatia e silêncio, metia na cabeça que tinha de abastecer-me de um sortido completo de artigos novinhos em folha: canetas e lápis novos, um caderno novo, borrachas novas, cargas novas para as canetas, pastas e blocos novos, enfim, tudo novo.”
- Então, gostaste?
- Plínio... Isto é Paulus Austerus, “Oraclius Noctis”.
- Ah, é?
- É...
- Ah, pois, é que eu...
- Esse nome Plagius não é por acaso pois não?
- Pois, tens razão... Olha! Parece que me estão a chamar. Tenho de ir para Roma... Vejo te lá, novamente? - Pergunta Plínio, envergonhado.
- Talvez... Mas tenho uma ideia melhor. Eu tenho de ir para Roma também. Posso ir com vocês? Evitava muita chatice.
- Claro, penso que não vai haver problemas da parte deles.
- É que eu tenho de ir dar umas consultas ao palácio de César, aliás, consta que o próprio César irá participar nas sessões de psicologia.
- Não me digas...
Plínio percebeu logo ali que Venusiana poderia ser extremamente útil para os intentos do grupo. Mas não era essa principal razão pelo seu contentamento pela nova companhia. Não havia como negá-lo. Plínio estava apaixonado.

1 comentário:

Anónimo disse...

Vice-Presidente!!!