XXVII - Magni Nominis Umbra

Com Salvadorus livre das obrigações imperiais, a biblioteca de Menditus estava sempre cheia de pessoas prontas para ajudar. Salvadorus tinha bom fundo, mas muitas vezes as suas boas intenções davam maus resultados. Ao tentar tirar uma caixa vazia do topo de umas estantes, Salvadorus, em vez de usar o escadote, tentou escalar as prateleiras, acabando por deixá-las irremediavelmente entortadas.
- Este material é muito fraquinho, isto não aguenta nada. Se nem um fino exemplar da raça masculina isto aguenta, vai aguentar o quê? – Pergunta Salvadorus, perante o olhar incrédulo dos presentes.
Salvadorus era também famoso por espatifar carroças, seja porque está à procura de lugares para a estacionar ou porque perde o controlo desta em curvas mais apertadas. Já Plínio à muito tempo que não apanhava uma multa. Consta que os videntes de Roma pressagiavam que algo mal estava a acontecer, porque estavam a mexer com a ordem natural das coisas.
Plínio andava ocupado durante as manhãs a organizar a sua fundação, perante a incredulidade de Geraldus. Com a fundação de manhã e as lutas à tarde, Plínio só trabalhava à noite, fazendo com que Menditus considerasse a contratação de uma colaboradora, mas o facto do sangue ser muito difícil de raspar da carpete da biblioteca fazia com que ele desistisse rapidamente da ideia, e além disso ainda se encontravam, de vez em quando, uns ossos de ex-colaboradoras atrás de alguns livros.
Geraldus, por sua vez, andava embeiçado por uma emigrante da zona da Helvetia, que morava sozinha em Roma. Geraldus, através do MSN, algo que mais ninguém sabia o que era, conseguiu engatá-la, ela que vinha de uma relação falhada com um Minotauro. O treinador de Plínio andava tão entusiasmado com isto que até tinha comprado uns bilhetes para ele e ela irem assistir às lutas no Coliseu.
- Mas, oh Geraldus, tu já compraste os bilhetes? – Pergunta Menditus.
- Já, porquê?
- Então, habituas mal a rapariga, olha se ela só sai contigo por causa da tua generosidade?
- Não tinha pensado nisso...
- E se ela se aproveita de ti?
- Mas...
- Então e se ela não gosta de receber presentes?
A esta altura Geraldus já estava sentado com as mãos na cabeça, a maldizer a sua vida.
- O que é que eu fui fazer? – Pergunta Geraldus, desesperado.
- Deixa lá estar. – Diz Salvadorus. – Já está, já está. Dás-lhe os bilhetes e pronto!
- Mas não devia ter comprado! Ainda por cima ficaram mais caros porque mandei vir por cavalo expresso! Ela vai pensar que sou estúpido.
- Mais vale agora do que depois. – Diz Plínio.
- Oh Geraldus, esquece lá isso, vai com ela e diverte-te, ofereces-lhe os bilhetes e mais nada. – Diz Menditus.
- Não. Não ofereço. Não vou.
- Vai lá! – Diz Plínio.
- Se for, compro os bilhetes outra vez. Alguém quer?
- Eu vou estar na arena, eu não preciso.
- Oh Geraldus, e se tu fingisses que compravas lá os bilhetes, e ela te desse o dinheiro?
- Não dá...
- Qual é o mal? – Pergunta Salvadorus. – Até podias dar lhe os bilhetes e dizer “olha, são 20 sestércios”.
- Que mau aspecto! – Diz Geraldus. – Que estúpido!
- Agora vai ser o dia todo nisto... – Diz Menditus a Salvadorus.
- E se eu enterrar os bilhetes no quintal? Eu enterro os bilhetes e daqui a uns milhares de anos alguém os encontra! É um tesouro arqueológico!
- E se te enterrássemos a ti e aos teus dramas? – Sugere Plínio. – Isso sim daria um belo tesouro, mas mais do foro psicológico.
- Quero lá saber, não vou.
Olharam todos uns para os outros e foi cada um à sua vida, ficando Geraldus sentado a falar sozinho. Salvadorus ia encontrar-se com Juristus na sala de reuniões, e Menditus e Plínio iam tratar da fundação. Juristus chegou e dirigiu-se para a sala de reuniões.
- Então, grande Salvadorus.
- Esse grande é num sentido humano e heróico, não é numa de eu ser gordo ou isso pois não?
- Não.
- Ah bom.
- Então, diz-me, Salvadorus, que planos tens?
- Bem, nesta missão terás de ser eficaz e eficiente.
- Mas há diferença?
- Há.
- Então?
- Eu passo a explicar: Imagina uma laranjeira a três quilómetros de Roma.
- Uma laranjeira a três quilómetros de Roma?
- Não. É um mau exemplo. Imagina um urso, uma carroça e três ou quatro pratos de sopa.
- O quê?
- Não, também não é isso. Imagina um pássaro. Tás a ver um pássaro?
- Sim.
- Não tem nada a ver. Agora imagina um cão.
- Salvadorus...
- Ah, bom, eficaz é atingires os objectivos a que te propuseste, eficiente é atingi-los de maneira rápida e de forma a que aproveites da melhor forma os recursos disponíveis.
- Percebi. Já vi que chegaste onde chegaste não só pelo teu aspecto.
- Obrigado, todos dizem o mesmo. Bem, tu vais aproximar-te de César e vigiá-lo. Vais ver se ele tem algumas desconfianças e coisas assim.
- Certo.
- E avisas nos sempre que ele estiver perto de nós ou a tramar alguma.
- Certo. Assim o farei.
Juristus conseguiu com facilidade o lugar de assessor de César, devido às fortes remodelações no seio do império Romano e ao seu recheado currículo. De inicio pensaram em colocar Geraldus nessa posição, mas a sua rivalidade com um ex gestor de operações, actual assessor do Império dinamitava esse plano.
Entretanto Menditus e Plínio andavam à procura de um lugar para estabelecer a fundação, agora que todos os trâmites legais já tinham sido tratados, com a ajuda de Juristus.
- Este sítio parece-me bem... Tem um ar acolhedor, uma entrada grande, é espaçoso...
- Plínio, isso é uma toca de um urso.
- Ah. Está bem, vamos continuar a procurar.
- E que tal este prédio? Está um bocado mau por fora, mas por dentro parece em condições. E que tal se ficássemos por aqui?
- Parece-me excelente Menditus.
- Já pensaste nas actividades que vamos fazer para angariar fundos?
- Ainda não... Tenho mesmo de pensar nisso.
Juristus já se encontrava na companhia de César, depois de este ter aceite a sua admissão sem grandes dificuldades.
- Hmmm... Este Plínio tem de ser tratado... Mas o público está do lado dele... E os meus níveis de popularidade estão muito em baixo... Tenho de o afastar do Coliseu, mas como? – Pergunta César.
- E se proibisse a presença dele no Coliseu? – Sugere um dos seus assessores. – Não se esqueça que ele tem o estatuto de gladiador-estudante. Podemos queimá-lo por aí.
Juristus ouvia com toda a atenção.
- É isso! – Diz César, não escondendo o seu contentamento, - Proibimos a entrada em que tiver esse malfadado estatudo!
- Eu também sou contra o estatuto. – Diz uma voz vinda da sombra.
- Viçosus... – Diz César. – Meu fiel e espinhoso assessor... Preciso de ti nesta hora.
- Descanse, César, estatutos é comigo. Não há estatuto.
- Muito bem, quero isto aplicado já para a noite de hoje. – Diz César. – Juristus, ficas encarregado de transmitir aos representantes do Plínio a minha decisão.
- Assim o farei César.
Juristus deslocou à biblioteca de Menditus e anunciou as más notícias a todos, que ficaram em choque.
- Mas sem lutares no Coliseu não vamos conseguir levar avante o nosso plano. – Diz Salvadorus, desesperado.
- Isto está muito mau mesmo... – Diz Geraldus.
- Eu ainda tentei interceder junto de César, - Acrescenta Juristus. – Mas ele estava decidido. Aquele Viçosus é pior que as cobras.
- Viçosus... Então ele voltou... – Diz Geraldus, desconfiado. – Eu sabia que este momento ia chegar.
- Bem, então vocês vão ao Coliseu não é? – Pergunta Plínio.
- Quer dizer, nós temos bilhetes, mas sem ti não tem piada ir. – Diz Gaius.
- Esqueçam-me por uns momentos. Eu tenho de fazer umas coisas. Vão vocês, não desperdicem os bilhetes.
- Se o dizes...
E assim o fizeram. Foram todos para o Coliseu, inclusive o primo de Geraldus, que este escolheu levar em vez do seu engate. Foram todos cabisbaixos, não era a mesma coisa ir ver as lutas sem o seu amigo peludinho.
Chegaram ao Coliseu, estava cheio como sempre, com o povo sequioso de sangue e carnificina. Desde cedo surgiram os primeiros cantos por Plínio, mas nada, o apresentador nunca mencionou o seu nome em nenhum dos combates. A sessão decorria com normalidade, especialmente quando eles ignoravam Geraldus, que se escondia atrás do primo na tentativa de não ser visto pelo seu antigo engate.
- Geraldus, e que tal, não sei, se parasses quieto? – Pergunta Edgar.
- E se a gaja me vê?
- Se te vir, azar, mas duvido, não sais de trás do teu primo! – Diz Menditus.
- Eu já sei o que eu vou fazer, vou desligar para sempre o meu telemóvel e nunca mais falo com ela.
- Vais desligar o teu quê? – Pergunta Menditus.
- Não sei. O que é que eu disse?
- Telemóvel ou lá o que foi.
- Onde é que eu fui buscar isso? – Pergunta Geraldus, confuso. – Quero lá saber, não quero é falar mais com ela.
- Vá, agora sentem-se que vai haver só mais uma luta e depois podemos ir para casa e confortar o pobre Plínio... – Diz Edgar.
O apresentador aproxima-se da varanda e olha para as suas notas.
- Agora, povo do Coliseu, temos um estreante... Vai lutar contra três escravos do Burundi, um técnico de contas e um funcionário das finanças... Ele é... Gominhos!
- Gominhos? – Pergunta Geraldus. – Esse nome faz-me lembrar alguma coisa...Uma vez íamos numa carroça, lembras-te Edgar? Rimo-nos muito por causa de uns gominhos... O que é que era?
- Faz-me lembrar qualquer coisa faz, agora o quê... – Diz Edgar.
- Também me recordo de qualquer coisa. – Acrescenta Gaius.
- Vamos lá ver o combate, pode ser que se lembrem depois. – Diz Menditus.
O gladiador entra na arena, com uma vistosa armadura e uma mascara... De urso. O combate começa e o gladiador despacha os adversários com uma limpeza nunca antes vista. Nem um pouco de sangue jorrou para a sua armadura. O público aplaudia de pé e gritava “Gominhos! Gominhos!”, e este agradecia, perante o olhar atento de César.
- Curioso... – Observa César. – Viçosus, chama este tal de Gominhos aos meus aposentos, quero falar com ele.
- Assim o farei, oh César.
Gominhos saiu da arena rapidamente, apesar de o povo ainda chamar por ele, mas foi rapidamente interceptado por Viçosus, que o acompanhou aos aposentos de César.
- Gladiador... Que máscara tão... peculiar.
- Foi uma oferta.
- E eu tenho uma oferta para ti. Glória. Poder. Dinheiro.
- Mulheres?
- Se fazes questão... Eu não disse nada porque, pela tua maneira de estar, podias ficar ofendido.
- Mas o que pretendes, oh grande César? – Diz Gominhos, enquanto se ajoelhava.
- Quero que mates Plínio Plagius, o Gladiador. E traz-me uma prova da sua morte.
- Será feita a sua vontade César.
- Gladiador... Porque é que estás a coçar os braços?
- Por nada... Por nada!
- Estás um bocado avermelhado...
- Não é nada, não é nada. Trarei a prova ainda esta noite.
E abandonou os aposentos de César. O Coliseu já se encontrava vazio. Menditus e os restantes companheiros já se preparavam para entrar na biblioteca, onde iriam contar a Plínio as novidades. Ao entrarem, encontraram um pequeno rio de sangue.
- Minha Deusa, quem é que mataste desta vez? Eu não contratei nenhuma mulher! E além disso, ninguém olhou para mim hoje! Diz lá onde está o corpo.... Está no tecto outra vez? Ou, não me digas que crucificaste outra mulher. Não, por favor, diz-me que não a desmembraste como a última e vais nos fazer jogar ao quente e frio para encontrá-la?
- Não, meu macho alfa, eu não matei ninguém. Desta vez.
- A sério? – Pergunta Edgar.
- Então de onde vem este sangue? – Pergunta Gaius.
Olharam uns para os outros e seguiram o rasto de sangue, numa correria desenfreada. Ao chegarem à secção de filosofia encontraram a espada de Plínio, a sua toga e alguns livros de filosofia, espalhados pelo chão. E, pior... Restos de pêlos.
- Vejam isto... – Diz Menditus. – Fédon, de Platão... Aberto no II capítulo...
Salvadorus ainda correu para as traseiras, para ver se encontrava alguém, mas em vão. A verdade era avassaladora: Plínio Plagius, o Gladiador, tinha sido assassinado.

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