XXIV - Risus Abundat In Ore Stultorum

Plínio acordou cedo, mal tinha conseguido dormir com a excitação. Foi ter à biblioteca, ainda Menditus estava a abrir o estamine.
- Menditus, Menditus!
- Então Plínio… - Responde Menditus, ensonado.
- Menditus, Menditus!
- …
- Vou treinar hoje no Coliseu pela primeira vez! Tudo bem que vai estar vazio, mas, ainda assim! Vou treinar no Coliseu!
- Bom para ti.
- Que é que se passa Menditus, não partilhas da minha felicidade?
- Sim, claro, iupi, matar gajos e tal…
- Então Menditus? Não me digas que escondeste umas facturas e agora não sabes onde estão?
- Não, não é nada disso…
- Então?
- Oh… É a minha Deusa, a minha esposa… Ela passa a vida a matar as minhas colaboradoras. E eu já lhe disse que só tenho olhos para ela…
- E o que é que ela diz disso?
- Diz que eu tenho razão, porque se olhar para outras ela arranca-me os olhos.
- Oh Menditus, talvez estejas a exagerar…
- Olha que não…
- Nem de propósito, aí vem a nossa nova colaboradora!
Mas Plínio acaba de proferir a sua frase, surge do nada um tronco suspenso em duas cordas que embate na nova colaboradora e a esmaga contra a parede.
- Catano!! – Grita Plínio.
- Estás a ver? – Diz Menditus, cabisbaixo.
- Oh, Menditus, vais ver que foi só um acaso. Afinal de contas, o pessoal passa a vida a morrer – Plínio vai falando cada vez mais lentamente. – com.. Um Tronco… Esmagado… Contra a parede… Hmmmm…
- Pois…
- Olha, lá vem a outra colaboradora, vais ver que…
Plínio nem tem tempo de acabar a frase. Do lado direito da parede surge uma lâmina que decepa sem dó nem piedade a pobre mulher.
- Já pensaste em contratar homens?
- Começo a pensar…
- Vamos lá para dentro esperar pelo Geraldus.
- Geraldus? Ele só vem lá para as duas.
- Não. Hoje é o meu primeiro dia de Coliseu. Ele não ia atrasar-se!
- Exacto, e os planetas rodam todos à volta do Sol em órbitas elípticas. Tu também acreditas em tudo…
Entraram na Biblioteca, já na companhia de Edgar e Gaius, e decidiram esperar por Geraldus, que chegou já depois do almoço, com um ar ensonado.
- Olá a todos… Não sei se repararam mas…
- Sim, lá fora estão duas mulheres mortas.
- Ah está bem. Bom, como vai tudo?
- Tudo bem. – Respondem em conjunto.
- E que é que se passa contigo? – Pergunta Plínio.
- Tenho aqui um caroço atrás da orelha… Alguém quer tocar?
- Não, obrigado. – Respondem todos novamente.
- Toquem lá, vá lá, alguém veja lá o que é isto.
- Nem pensar. – Diz Menditus. – Depois já sei como é, aparece-te um caroço no peito, depois nos testículos. Eu sei como tu és.
- Vocês saíram cá uns belos amigos…
- Como é que é Geraldus? Vamos para o Coliseu? – Pergunta Plínio, ansioso.
- Sim, ainda vais a tempo das inscrições.
E assim o fizeram, seguiram para o Coliseu. Plínio não continha a excitação e Geraldus mal o podia ouvir. Assim que chegaram perto do Coliseu, a multidão começou a aumentar de intensidade. Ao caminharem pelo meio dessa multidão, rumo ao local das inscrições, Plínio estranhava o facto de as pessoas olharem para eles, apontarem e dizerem “olha o Menino! Olha o Menino!”
- Oh Geraldus…
- O que foi?
- Porque é que eles apontam para mim e dizem “Olha o Menino”? Eu não estou habituado. Geralmente é mais “olha o urso!” ou “olha o lobisomem!” ou “olha a menina!”… Não percebo…
- Não ligues…
Deram mais uns passos e apareceu um homem, com uma capa e um capuz, que se coloca diante deles.
- Menino! Menino! Que bom ver o teu regresso ao Coliseu, local mais pobre desde que abandonaste a luta!
- Mas eu nunca tive no Coliseu! – Exclama Plínio. – Está doido o homem!
- Quem é o urso? Não estou a falar contigo!
- Geraldus? Porque é que ele te está a chamar menino?
- Não conheces o menino? – Pergunta o homem confuso. – Menino? Porque escondes a tua identidade? O teu passado… É de sangue… Mas de glória!
- Menino? Não estou a perceber…
- Era a minha alcunha… - Diz Geraldus. – Em tempos, numa das minhas primeiras batalhas no Coliseu, éramos uns quantos romanos contra um grupo de escravos talvez três vezes mais numerosos que nós. A luta decorria sangrentamente, até que só ficou uma espada na arena. A minha. Consegui bloquear um ataque de um escravo e cortei-lhe a cabeça. E eles pediam-me para me despachar, para andar com isso. Mas uma cabeça não se corta de qualquer maneira… Aí, o Virgílio pediu a espada ao Maximus, que respondeu: “O Menino nunca mais se despacha! Parece um Menino a cortar!”. E ai ficou a minha alcunha…
- Grande Menino! – Grita o homem, perante o espanto do povo que por ali se encontrava.
O povo e alguns lutadores reuniram-se à volta de Geraldus, e ergueram-no em ombros enquanto gritavam: “Menino! Menino”
- Que raio… - Disse Plínio para ele mesmo.
Depois da inscrição voltaram para a biblioteca, onde Plínio não perdeu tempo para contar os acontecimentos mais recentes.
- … E depois eles pegaram-no em ombros e gritaram “Menino! Menino!”. Foi incrível!
- Ora esta… - Diz Menditus, perplexo.
- Daí eu não me lembrar dele! – Diz Gaius. – Claro! O Menino. Eu devia ter calculado.
- Estou maravilhado… - Diz Edgar.
- Eu sei que sou o melhor, obrigado, mas agora temos de ir.
- Onde vão? – Pergunta Menditus.
- Vamos a Atenas. – Responde Plínio. – Preciso de uns conselhos de Sócrates.
Plínio e Geraldus seguiram para Atenas, pois faltavam poucos dias até à recepção dos Gladiadores por César.
Chegados a Atenas, Plínio e Geraldus deslocaram ao gabinete de Sócrates. Quando entraram, encontraram as janelas fechadas e apenas uma vela acesa…
- Mas que raio é que se passa aqui? – Questionou Plínio.
- Eu não sei, mas não gosto de gajos de túnica, dão me arrepios…
- O quê?
- Não sei, a maneira como eles te sobem pelas pernas e mordem-te as partes baixas… Não gosto pá!
- Geraldus, isso são as carraças!
- São? Então os filósofos… Já sei, eles alojam-se nos teus intestinos e reproduzem-se e mais não sei quê.
- Isso são as ténias.
- Então são aqueles que entram nos quartos à noite e zumbem a noite toda e tu tentas dormir e escondes-te debaixo dos lençóis e depois eles não se vão embora e tu agarras o teu urso de peluche e…
- Geraldus… São as vespas! Estás a falar das vespas.
- É tudo a mesma coisa.
Nisto, salta de um canto Sócrates, agarrado à sua barba.
- Plínio! Bons olhos te vejam! Quem é esta coisa imberbe que te acompanha?
- É o Gladiador Menino.
- O nome diz tudo…
- Que estavas a fazer, Sócrates?
- Estava a fazer sombras chinesas… Com a minha barba!
- Estes filósofos… - Resmunga Geraldus.
- Murmuraste alguma coisa, imberbe?
- Eu? Nada, nada…
- Faz-te útil e enquanto eu converso com o grande Plínio, traz-me um copo de água. A água está ali atrás, ao lado do frasco de cicuta. A água é a do lado esquerdo.
Geraldus, baixou a cabeça e foi a resmungar até ao local onde estavam os dois frascos.
- Vai busca água, vai buscar água, onde é que já se viu, o Menino a ir buscar água para alguém, ainda por cima alguém que guarda água ao lado da cicuta e…
Geraldus pára e olha para os dois frascos.
- Ah… Está bem… E agora qual é a água. Ah, é a do lado esquerdo. Não, espera. A cicuta era do lado esquerdo. Raios, eu sabia que havia qualquer cosa do lado esquerdo. Ora bem… É melhor então levar do lado direito, eu engano-me sempre…
Geraldus enche o copo, o liquido entra em contacto com o copo e deita algum fumo.
- A água daqui é forte…
Entra na sala, onde a conversa decorria animada.
- E eu disse-lhe: Mas isto é apenas a minha barba! – Diz Sócrates, enquanto ele e Plínio riem perdidamente.
- Está aqui a água…
- Muito resmunga este aqui. – Afirma Sócrates. – Deixa-me só beber um bocadinho que eu já acabo a história.
Sócrates leva o copo à boca e começa a ficar verde.
- Sócrates! Sócrates! O que é que fizeste Geraldus!
- Eu? Nada! Apenas lhe dei água, do frasco do lado direito.
- Mas ele disse do lado esquerdo! Olha para ele a fumegar!
- Não tenho nada a ver com isso! Também se ele morrer, o que é que interessa? Aposto que tirou o curso na Independentus!
- Tu não tens cura! Vamos fugir daqui!
Plínio e Geraldus fugiram rapidamente e voltaram a Roma, jurando não mais voltar. Chegaram mesmo a tempo de Plínio ir à recepção de César.
No local da recepção encontravam-se vários Gladiadores. A conversa ia amena entre alguns deles, enquanto outros aproveitavam para ir petiscando as mais diversas iguarias oferecidas pelo imperador. De repente, a maior porta do salão abre-se e surge César, acompanhado da sua guarda. Os gladiadores alinham-se todos e gritam:
- Ave César! Morituri te salutant!
Plínio cospe o que tem na boca e grita.
- César! Coisa e tal salivante!
Geraldus olha para ele, incrédulo.
- O que raio tu disseste?
- Sei lá! O que é que raio ELES disseram?
- É a saudação dos gladiadores para César, significa “aqueles que vão morrer te saúdam”.
- Mas nós só viemos aqui comer! – Exclama Plínio.
- Eu não te posso trazer a lado nenhum pois não? Eles gritam isto quando estão na arena.
- Ah…
- Habitua-te.
César foi andando pela sala, falando com alguns dos gladiadores. César aproximou-se dos dois, sem que eles reparassem.
- Ave! – Grita César.
- Ave! – Grita Geraldus.
- Olé! – Grita Plínio.
- Grande Imperador, perdoai a Maria Alice, ele não sabe o que diz.
- Quem és tu, gladiador?
- Plínio Plagius.
- E tu lutas, Plínio?
- Luto.
- E estás disposto a morrer pelo Imperador?
- Ora bem, quer se dizer, morrer nem por isso… Agora matar, pronto, isso ainda se arranja…
- Gosto da tua sinceridade, gladiador…É o que costumo dizer, não se olha o dente a Urso dado!
E César começa-se a rir, seguido de Geraldus, num riso altamente forçado. Plínio ficou a olhar para os dois, perplexo, até Geraldus lhe dar uma cotovelada, para ver se ele percebia que era suposto rir. Plínio captou, e começou a rir-se, com o seu habitual riso demolidor. César parou imediatamente de rir e ficou a olhar circunspecto para Plínio.
- Gladiador… Esse riso…
- Perdão, Oh César!
- Não, não… Esse riso… Parece que vais dominar o mundo… Até estou arrepiado… Toquem lá…
- Eu também estou arrepiado! – Diz Geraldus. – Toquem-me também.
- Oh Zeus… - Diz Plínio.
- Plínio… Eu quero que me acompanhes, sempre que precisar, aos meus discursos. Ficarás escondido debaixo do púlpito, e sempre que eu te der uma joelhada, tu ris como se fosses dominar o mundo. Os meus discursos são inflamados, inspiradores. Mas, falta qualquer coisa… Agora, já sei o que é, graças a ti. O riso. Vejo-vos na arena, Gladiadores…
Geraldus e Plínio saíram da festa e foram contar aos outros o que se tinha passado, perante a incredulidade destes. Deitaram-se cedo, depois disso, pois amanha seria a primeira luta de Plínio no Coliseu.

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