XXII - Vitiis Nemo Sine Nascitur

A vida na livraria continuava atribulada. Menditus tinha uma nova colaboradora e incumbiu Geraldus de a vigiar enquanto ela estivesse na livraria, não fosse ela perecer em condições estranhas. Geraldus fazia essa tarefa de bom grado, afinal de contas, passar o dia a olhar para mulheres era algo que ele gostava muito. Enquanto vigiava a rapariga, Geraldus ia ouvindo a conversa de Gaius e Edgar sobre o novo trabalho de Plínio. Este consistia em recuperar os cinco livros de filosofia perdidos, livros que são considerados míticos. A sua localização era conhecida: o mundo paralelo. Geraldus ficou espantado quando ouviu falar de uma dimensão paralela. Ou foi disso ou foi por ter visto o decote da colaboradora, não conseguia precisar bem. Mas a verdade é que esta história de dimensões paralelas lhe fazia um bocado de confusão. Talvez tentasse negar ou esconder alguma experiência que teve, alguma reminiscência de um acontecimento passado que o tinha marcado. Decidiu ir com Plínio, o seu aprendiz. As palavras da Deusa ecoavam na sua cabeça. Sabia que seria útil, aliás, que iria ser fulcral no desenrolar da história. Só não percebia como é que essa situação se iria desenrolar. Portanto, já que tinha que esperar, mais valia tentar espreitar mais uma vez para o decote da colaboradora.
Menditus e Plínio tinham ido dar uma volta, pois Plínio queria voltar a ver aquela rapariga. Não tiveram sucesso, portanto foram chamar Juristus para supervisionar mais um trabalho e voltaram para a biblioteca.
- Então Geraldus, correu tudo bem? Ela ainda está viva?
- Ela e as suas duas amigas...
- Quais duas amigas? Ah... Já me disseste mais do que queria saber, mas ainda bem que tudo correu bem.
- Pois. Plínio, Juristus, como é que é? Vamos lá para as dimensões paralelas?
- Quais dimensões paralelas? – Pergunta Plínio.
- Eu não sei se o meu contracto contempla dimensões paralelas. Porque é que um gajo nunca lê as letras miudinhas? – Pergunta Juristus para si mesmo.
- É simples Plínio. – Diz Edgar, ao entrar na sala. – Os cinco livros de filosofia perdidos estão numa dimensão paralela. É só ires lá, apanhá-los e voltares. Não deve ser difícil.
- Eu nem sei se acredito, mas está bem. E onde está essa dimensão paralela?
Seguiram para casa de Plínio, e dirigiram-se para o quarto dele.
- Eu ainda não percebi porque é que raio estamos no meu quarto.
- Plínio, sabes aqueles livros de filosofia que levaste da biblioteca e nunca devolveste?
- Er, sei, sim, sei, porquê?
- Onde é que eles estão?
- Ora bem, isso agora...
- Já viste debaixo da tua cama? – Pergunta Edgar, apontando para a cama de Plínio.
- Debaixo da minha cama? Porque raio é que haveriam de estar aí? Mas, está bem, se tu o dizes...
Plínio baixa-se e espreita para baixo da cama e fica boquiaberto. Debaixo da sua cama estava um portal para uma dimensão paralela. E ele nunca tinha visto.
- Quem é que pôs isto aqui?! – Pergunta Plínio, assustado.
- Acho que sempre aí esteve. – Diz Gaius. – Vá, tu, o Geraldus e o Juristus tem de entrar aí para dentro. Nós ficamos aqui à vossa espera. Caso não voltem até amanhecer, nós vamos ver o que se passa.
- Bem, já vi que não tenho saída não é? Siga lá.
Plínio entrou no portal, e Geraldus e Juristus seguiram-no lentamente, não estavam muito convencidos nem confortáveis com esta história das dimensões paralelas. Sentiram-se cair num buraco enorme e aterraram no beco atrás duns caixotes. O portal ficou lá, atrás deles. Pelo menos sabiam onde voltar. Limparam-se, Juristus ajeitou os seus papéis e decidiram começar o trabalho. Segundo Edgar, convinha deslocarem-se a casa de um sábio e perguntarem a localização dos cinco livros de filosofia, e com sorte arranjar um mapa do local e encontrá-los. Edgar não sabia há quanto tempo o portal estava aberto nem durante quanto tempo permaneceria aberto, por isso aconselhou pressa aos aventureiros. Ao andar por aquele local estranho, chegaram rapidamente à conclusão que era exactamente igual a Roma. Tirando a parte das pessoas terem chifres e caudas, de haver coisas a voar que nem sabiam bem identificar, era praticamente o mesmo. Quando viram a primeira pessoa com um ar relativamente normal (a única coisa estranha era um terceiro braço que saia das costas), perguntaram-lhe onde era a casa do sábio. Este estranho a pergunta mas mandou-os para terceira casa na terceira rua. E eles assim fizeram.
Ao chegarem, a porta encontrava-se entreaberta, e começaram a discutir quem entraria primeiro. Plínio e Geraldus defendiam que devia ser Juristus, pois ele era perito em questões diplomáticas, mas Juristus defendia que era devia ser Geraldus, pois ele é que era supérfluo nesta questão dos trabalhos.
- Fazem o favor de entrar de uma vez por todas? – Grita uma voz lá de dentro.
Os três tremeram de medo perante a potência da voz. Começaram a empurrar-se uns aos outros na direcção da porta, caindo no meio da sala.
- São “vocês” que querem os cinco livros de filosofia perdidos? – Pergunta a criatura, que, apesar da voz assustadora, não tinha mais de cinquenta centímetros.
- Sim. Somos nós. – Responde Plínio.
- Zeus anda mesmo sem alternativas, para mandar umas personagens assim. Enfim.
- Nós somos valentes! – Grita Geraldus.
- Claro, “Menino”.... Eu sei...
- Menino? – Pergunta Juristus.
- Ah, estes monstros deliram... – Diz Geraldus. – Então, Sr. Monstro, vamos lá deixar-nos de conversas secundárias. Onde estão os livros?
- Isso é o que toda a gente quer saber, não é? Não estou aqui para ajudar Zeus, não ganho nada em esconder a localização dos livros. Mas... O que é que eu ganho em ajudar-vos?
- O que é que quer ganhar? – Pergunta Plínio.
- O que é aquilo que ele tem na mão? – Pergunta o sábio, apontando para Geraldus.
- É a minha Powerballus.
- Powerballus? – Pergunta o monstro intrigado.
- Sim. É um aparelho giroscópio que dá músculos nos braços.
- Pensei que esses músculos fossem de outro tipo de exercícios.
- Epá, alguém me segure, alguém me agarre que eu vou-me a ele! – Diz Geraldus.
- Geraldus, tem calma. Dá-lhe lá a Powerballus e ele dá-nos a informação que pretendemos. – Aconselha Juristus.
- Vocês ficam a dever-me uma, ficam desde já a saber. Toma lá monstro...
O monstro olha admirado para a Powerballus, e quando começa a utilizá-la começa a tremer violentamente. Quando pára a tremedeira, o monstro ri-se perdidamente.
- Isto é brilhante! – Diz, entusiasmado.
- Muito bem, tremeliques, agora queremos saber onde estão os livros. – Diz Juristus.
- Ora bem, é simples. Têm aqui este mapa. Eles estão todos aqui na zona. Não deverá ser difícil.
- Sigamos, então. – Diz Plínio.
- Antes de saírem... – Intervém o monstro. – Tu devias tapar-te melhor. É que aqui és facilmente confundido com um lobisomem, o que não abona nada em teu favor. Sabes que eles não são muito bem vistos por aqui. Largam muito pêlo e babam tudo. Veste uma capa ou qualquer coisa. Para o vosso bem.
- É melhor fazer o que ele diz... – Diz Geraldus.
Saíram da casa e Plínio vestiu a capa de Juristus. Pararam por alguns segundos para consultarem o mapa e definirem onde vão primeiro. Decidiram começar pela casa mais próxima. Segundo Edgar, os livros de filosofia emitiam um brilho dourado, logo seriam fáceis de identificar mesmo estando entre outros livros. Entraram no primeiro local, era algo que se assemelhava a um bar, mas com todo o tipo de criaturas estranhas no seu interior.
- Mantenham-se juntos. – Diz Juristus, fazendo com que Plínio e Geraldus se encostem a ele. – Pensando melhor mantenham-se perto. Mas não juntos. E quando digo perto é perto tipo não saiam da vista uns dos outros. Vamos lá evitar certos “toques”. Vamos ali ao barman perguntar pelo livro. Pode ser que seja rápido.
Chegaram ao balcão e, depois de pedirem umas bebidas (que não tinha qualquer intenção de beber), decidiram fazer umas perguntas.
- Oh chefe... – Diz Juristus, para o barman.
- Sim, humano... Queres mais alguma coisa é?
- Diz me lá... Um passarinho do mundo editorial confidenciou-me que por aqui havia um dos cinco livros de filosofia perdidos... Estou a falar verdade?
- Estás. No sentido em que “havia” é a conjugação correcta do verbo. Já não há. Alguém antecipou-se a vocês.
Eles ficaram confusos e decidiram abandonar o bar, e partir para o segundo local. Quem é que teria tirado o livro, e porquê? Esperavam obter respostas na segunda casa. Bateram à porta e ela abriu-se sozinha. Entraram, cuidadosamente. Não queria pisar nenhum animal estranho ou coisa que o valha. Começaram a ver pêlo e baba nos móveis... Era definitivamente a casa de um lobisomem.
- Procurem o livro e vamos sair daqui... – Diz Geraldus, nervosamente.
Antes sequer de chegarem à segunda sala, saltou um lobisomem do andar de cima. Eles paralisaram de medo. O lobisomem rosnou e saltou na direcção de Plínio, e Geraldus e Juristus temeram o pior. Plínio fechou os olhos. Quando os voltou a abrir, tinha o lobisomem abraçado a ele, a lamber-lhe a cara.
- Pipas! Grande Pipas! – Diz o lobisomem, eufórico.
- Pipas? – Pergunta Geraldus.
- No amor vale tudo, só não vale dançar homem com homem nem mulher com mulher, como dizia São Baião. Agora lobisomem com homem acho que não há problema. – Diz Juristus.
- Então! Não sou o Pipas! – Diz Plínio, tentando limpar a cara.
- Ah, Pipas! Brincalhão! – Responde o lobisomem. – Então não és tu? Esse pêlo todo, a armadura, és o meu amigo Pipas!
- Eu bem sabia que ele tinha qualquer coisa de esquisito... Sempre desconfiei. – Diz Geraldus, enquanto Juristus encolhe os ombros.
- Sim, sou eu o Pipas! – Diz Plínio, piscando o olho para os outros dois. – Então, er... amigo! Conta-me lá, onde está o livro de filosofia perdido que tu tinhas.
- Ah Pipas, pá, que bom ver-te. Veio cá um esquisitóide buscá-lo. Como não lhe dava uso, dei-lho de bom grado. Aquela luz dourada que aquilo mandava não me deixava dormir bem.
- Ah.. Então olha, nós vamos só ali ao bar buscar umas bebidas e já voltamos. Para uivar, ou qualquer coisa.
- Até já Pipas!
E saíram apressadamente da casa do lobisomem. Plínio não estava nada contente por ser constantemente confundido com animais. Agora estavam ainda mais confuso. Alguém andava à frente dele a recolher os livros de filosofia. Entraram na terceira casa, onde apenas se encontrava uma senhora a cozinhar. Parecia ser uma senhora de idade normalíssima, simpática, atenciosa, sempre a remexer o seu tacho.
- Desculpe incomodar, minha senhora. Mas por acaso não tem por aí um livro de filosofia perdido não?
- Já tive filho! Mas aquele vampiro maroto veio cá pedir-mo. E eu dei-lhe.
- Vampiro maroto? – Pergunta Juristus.
- Sim. O Vampiro Deprimidus, ele mora a cinco casas daqui. Acho que anda a coleccionar os livros perdidos.
- Ah sim. Então acho que vamos até lá. Obrigado por tudo, minha senhora.
- De nada filhos!
- Que senhora tão simpática. – Diz Plínio à saída.
A senhora acena para eles, e, mal eles saem, coloca mais uns corpos de bebés na panela, voltando a mexer e proferir cânticos em latim, enquanto os olhos ficam vermelhos. Eles decidiram ir ter com esse Vampiro e recuperar os livros. Chegam à casa que a simpática senhora indicou, e, com a perícia de Geraldus, “Il Capo”, como é conhecido no seu grupo de amigos, conseguiram abrir a fechadura. Passaram por várias cruzes invertidas, caixões e coisas que normalmente se associam a um vampiro. Correram o piso térreo todo e nem sinal dele. Até que ouviram um barulho vindo da cave. Espreitaram e viram lá o Vampiro a admirar os livros.
- Eh! Tu! – Grita Plínio. – Precisamos desses livros!
- Ahhhh! – Grita o vampiro. – Que susto! Querem me matar? Quer dizer... Até podiam querer... Mas eu já estou morto... É deprimente, eu sei, nem sequer morrer eu posso...
Geraldus olha para Plínio que olha para Juristus, que encolhe os ombros.
- Eu só vim cá ver a bola. – Diz Juristus.
Plínio desce as escadas e explica o porquê de precisar dos cinco livros de filosofia perdidos, mas o vampiro não se comove.
- Desculpa lá, mas eu gosto destes livros... Parecendo que não a luz dourada que emitem dá um toque bonito à minha cave. E é o máximo de luz que posso ter.
- Ah...
- Só posso sair à noite. Há pouca luz. Vocês, na vossa linda dimensão, ficam todos contentes e dizem: Ah, vou sair à noite, ganda maluco e mais não sei quê. Eu SÓ posso sair à noite. Se eu chegasse a um grupo de vampiros e dissesse: Vou sair ao dia! Era logo considerado um rebelde. Claro que depois ficava reduzido a um monte de cinzas. E cinzas fraquinhas. Mas, também, não tenho amigos. A quem é que diria que iria sair?
- Hmmm...
- Ser vampiro não é fácil. Sabem o que é ir sair com uma vampira jeitosa e não conseguir ajeitar o cabelo porque não possuo qualquer reflexo? Bem que posso estar o dia todo a olhar para o espelho. Nada. Nem sei se sou bonito.
- És, claro... – Diz Plínio. – Todos somos bonitos, cada um à sua maneira.
- Isso é fácil de dizer para ti, que és moreno e peludo, aposto que se andasses aí com uma moca a bater nas gajas à homem das cavernas elas ficavam caídas aos teus pés.
- Literalmente. – Acrescenta Juristus.
- E depois durmo num caixão. Vocês não sabem o quanto custa dormir no caixão. Quero me tapar melhor, não posso. E depois quero me virar e custa um bocadinho. E decorar a casa? Não dá. Queria fazer uma arranjinho de cores aqui na cave, mas, qual quê? Só arranjo caixões pretos e cruzes prateadas, é uma chatice. Queria um rosinha para dar cor a isto, dar um bocado de vida. Ah, esperem, pois. Eu não tenho vida. E o que eu não dava para comer uma saladinha. Mas, não, é só sangue. Enfim.
- Olha... E se nos desses os livros, e nós te deixássemos vir para a nossa dimensão? – Pergunta Geraldus.
- E o que eu faria lá?
- Então, nós temos um amigo que é o Menditus, que também está sempre a queixar-se de tudo. Vocês ficavam amigos e queixavam-se um para o outro. Claro que havia o risco de alguém vos ouvir e enforcar-se logo ali. Mas acho que se vão dar bem.
- Uau! Um amigo! Tomem lá os livros! Vamos lá conhecer esse Menditus.
Juristus apontou o trabalho como bem sucedido, e seguiram rapidamente para o portal. Voltaram para a biblioteca, ainda não tinha amanhecido, e foram apresentar o vampiro ao Menditus.
- Oh Geraldus... Trazerem um mulheraça daquelas eu acho bem, aliás, fico-vos eternamente grato. Mas, um vampiro? Um vampiro Geraldus? Depois ele suja tudo de sangue, e eu não tenho onde arrumar o caixão. E não gosto de cruzes.
- Estás a ver Deprimidus? Ele já se está a queixar.
- É fantástico. – Observa Deprimidus.
E assim ficaram, os dois pela noite fora, a queixar-se da vida e das vicissitudes dela, para gáudio dos presentes.

1 comentário:

Anónimo disse...

plinius, grande home
um herrrrroi