XX - Nascuntur Poetae, Fiunt Oratores

Depois de algumas reuniões para preparar o novo trabalho, Geraldus e Plínio já estavam a começar a ficar chateados com as estranhas ausências de Menditus. As desculpas eram bastante variadas e plausíveis, mas a presença dele era necessária para os trabalhos serem concluídos com êxito.
- Aquele Menditus, desde que se casou... – Diz Plínio, incomodado.
- É um sortudo, aquele Menditus, chega a casa e tem lá a mulher dele, desnuda na cama, não é justo. E ainda por cima queixa-se de tudo e mais alguma coisa. Havia de ser como eu, de chegar a casa e só ter a minha mão e ainda por cima...
- Geraldus, chega, já percebemos a ideia. – Diz Edgar.
- Eu bem sei que o Menditus nunca tem dúvidas e tem sempre iniciativa, mas não é isso que estou aqui a ver. Vou fazer já uma queixa à associação de Bibliotecas de Roma. – Geraldus estava indignado.
- Deixa lá o Menditus e vamos concentrar-nos no meu trabalho, sim?
- O Plínio tem razão, - Acrescenta Gaius – temos de nos concentrar. Ora bem, o que é que sabemos até agora?
- Bem, sabemos que o Poeta Imperceptibilus costuma aparecer em noites de lua cheia no anfiteatro do Peloponeso. E que nunca houve um sobrevivente para dizer o que realmente aconteceu quando ele começa a declamar um dos seus poemas. – Diz Edgar.
- Então e no que consistem os poemas?
- Ninguém sabe.
- Boa. – Diz Plínio, resignado. – Então, e se eu, só naquela da amizade, o trespassasse com a minha espada antes sequer de ele abrir a boca?
- Até era uma boa ideia, mas o problema é que ele aparece em espírito… – Diz Edgar, olhando para os pergaminhos.
- Ena pá! Isso quer dizer que tu vais fazer as tuas rezas?! Oh si cariño e não sei quê ruf mich an?! – Pergunta Geraldus, entusiasmado. – O que eu gosto disso, tu tens um tom divino na tua voz quando rezas, quase me convertes à tua religião.
- Geraldus, a minha religião é uma religião ancestral, da região da Pornografitilandia, no norte da Europa, de onde sou originário... Apesar de exigir uma enorme disciplina, penso que darias sem duvida um bom seguidor. – Responde Edgar.
- Pornografitilandia... Acho que me sentiria em casa nesse local, sinto algo de familiar no nome.
- Bem, parece me que, como de costume, vou ter de descobrir tudo em cima da hora não é? – Pergunta Plínio, resignado. – Vamos então para a Grécia.
- Então e o Menditus? – Pergunta Geraldus.
- Alguém o avise que nós partimos.
- Ninguém parte para lado nenhum sem mim!
- Juristus, bem-vindo à nossa livraria! Claro que ninguém vai sai ti. – Afirma Gaius.
- Muito bem, o meu trabalho está legalizado por nada mais nada menos que Zeus, pai do direito divino e tal, e o resto não interessa, até porque não me lembro dos artigos, mas o que interessa verdadeiramente é que aqui estou. Onde é a ida? Envolve guerreiras semi-nuas outra vez?
- Boas, Juristus, ainda bem que vieste. – Diz Geraldus. – Mas olha que desta vez o trabalho envolve um Poeta.
- Tá mal, tá mal... Mas, espera lá, olha que as gajas gostam de poesia. Na volta há lá gajas à volta do poeta! – Responde Juristus.
- Olha que é improvável, visto que toda a gente que ouve poemas desse poeta acabar por morrer. – Acrescenta Edgar.
- Ah, então vamos afastar as gajas do poeta. Já há poucas jeitosas, e se anda por ai um gajo a fazer rimas e a matar as febras, está na altura do Plínio por um fim a isso.
- Também concordo com o Juristus.
- E tu se não concordasses com qualquer coisa que tivesse a ver com mulheres, Geraldus, é que ficava espantado. – Diz Plínio. – Além disso, de onde é que vocês se conhecem?
- Do Iuvenis.It, aquele catálogo mítico de gajas. – Diz Juristus.
- Enfim... Podemos partir, então?
Fecharam tudo e partiram para a Grécia. Edgar e Gaius ficaram na biblioteca, era necessário recuperar tudo o que foi perdido aquando do grande incêndio, e Menditus ficou fechado em casa com a sua Rainha, de encantos mil.
- Plínio, diz-me lá, jovem aprendiz, vais aproveitar para ver Sócrates?
- Vou... Talvez ele seja capaz de me dar algumas dicas sobre este Imperceptibilus.
- Fazes bem, fazes bem... – Responde Geraldus.
- Eu não gosto dessas filosofias e de gajos com túnicas brancas, há algo de abichanado nisso tudo... – Diz Juristus, desconfiado.
- Está tudo na barba. – Responde Plínio.
A viagem corria bem, e dali a pouco tempo estariam em Atenas. Plínio dormia nas traseiras da carroça enquanto Juristus e Geraldus falavam de mulheres para passar o tempo.
- Sabes qual era o meu sonho? – Pergunta Geraldus.
- Querias ser homem?
- Não. Quer dizer. Já sou. E fui um grande gladiador.
- Olha que eu apostava na BetAndWinus, e nunca me lembro de ter apostado em nenhum Geraldus.
- Devias estar distraído com os pergaminhos de direito se calhar... Mas voltemos à conversa do sonho!
- Diz lá então qual é o teu sonho, então...
- Ora bem, então era assim: Eu estava num sítio, tipo zona comercial de Roma. E não haviam homens. Eram só mulheres.
- Só mulheres?
- Só.
- Sem homens?
- Sim. E então eu andava por lá e andava a escolher a ideal para mim. Mas, obviamente, teria de as “experimentar” primeiro.
- Ah, percebo...
- Sim, era fantástico. E elas queriam todas agradar-me, as malucas. E eu com a dificuldade da escolha teria de repetir tudo outra vez. Sabes como sou indeciso.
- Sei.
- Depois iria até ao Coliseu. E sabes o que havia lá?
- Deixa ver... Gajas?
- Ah, também já tiveste este sonho!
- Não, apenas sou bom a adivinhar.
- Então era só gajas no Coliseu. E lutavam por mim. E quando eu gostava de uma, levantava-me da cadeira e como sinal de agrado e como prémio para a vencedora, levantava o meu vigoroso e grande p...
- Calma, calma, já chega de histórias, acho que vou dormir um bocado.
- Polegar... Então dorme bem. Tenta sonhar com isto, vais ver que vais gostar.
Chegaram à Grécia rapidamente, e enquanto Geraldus foi investigar o local onde o Poeta apareceria na lua cheia, o que segundo Edgar e os seus mapas astronómicos seria hoje, Plínio foi visitar Sócrates. Caminhou através da Civitas Universitárias, onde era observado com reverência. Anunciou a sua chegada à secretária de Sócrates, e esta mandou o entrar. Ao entrar no gabinete de Sócrates ficou confuso ao verificar que este não se encontrava no seu cadeirão.
- Só... Sócrates?
- Aqui, jovem Plínio!
Plínio olhou para o lado e viu Sócrates atrás de um biombo, parecendo estar a mexer num recipiente com água.
- Espera um pouco, estou a fazer a barba!
- O quê?
- Fecha os olhos!
Plínio não queria acreditar que Sócrates estaria mesmo a fazer a barba, mas dele já esperava tudo.
- Espera, não abras ainda! Podes abrir! Ah! Não fiz nada a barba! Dia das Mentiras! Enganei-te não foi?!
- Sócrates... Hoje não é dia das mentiras!
- Não, pois não. Mas vais dizer que não acreditaste?
- Nem por isso... Sócrates, diz-me, que sabes sobre o Poeta Imperceptibilus?
- Sei que não tem barba... – Diz Sócrates, enquanto se senta no seu cadeirão.
- E isso é relevante?
- Altamente! Sabes Plínio... Encontro-me nas ruas da amargura...
- Que se passa?
- A faculdade de Filosofia já não é o que era... Os jovens descuram a barba, tomam banho várias vezes por semana... Isto já não é o que era... Prevejo que um dia acabem por fechar isto.
- Ah, vá lá Sócrates, não podes ir abaixo...
- Isso é fácil de dizer para ti, que tens uma forte barba... Olha para isso, parece uma corrente feita pelos Deuses...
- É bem jeitosa, já sei... E faço te uma promessa, Sócrates. Quando triunfar no Coliseu, vou incitar aos jovens barbudos, quero dizer, filósofos romanos para que venham até aqui, à Civitas Universitárias para prosseguirem os seus estudos e darem continuidade aos teus ensinamentos,
- Fantástico Plínio!
- Agora vou, Sócrates...
- Ah, Plínio, lembra-te... O uivar do lobo ameniza os labirintos das palavras...
Plínio saiu do gabinete de Sócrates sem perceber o que ele queria dizer com aquilo, mas como já se tinha tornado um hábito isso acontecer, nem sequer pensou duas vezes e seguiu até ao local de encontro com Geraldus e Juristus.
- Vim ali de uma reunião com o patrão, e ele está bastante convencido que vocês desta vez não vão conseguir ultrapassar o desafio. – Diz Juristus, desconfiado.
- Ah, isso é o velho Zeus com os seus preconceitos. – Diz Geraldus. – Vais ver que conseguimos. Aliás que o Plínio consegue. Sim, porque eu não quero misturas com poetas. Anda sempre com uma mão na pena e a outra nunca se sabe bem onde anda, se te distrais ainda te agarrai. Eu não quero gajos que falam do cheiro das rosas e do néctar do amor e do som melódico do vento agarrados a mim.
- Eu fico lá em cima também. – Acrescenta Juristus. - Não que tenha medo, mas cumpro melhor o meu trabalho. Ah, por falar nisso, Plínio, tens de assinar aqui o contracto. Uma coisa pequena, são só trezentos rolos de pergaminho, em letra miudinha. Assinas aqui em baixo e tá feito.
- Então assino aí em baixo não é? E o que diz o contracto?
- Basicamente diz que tens de fazer os trabalhos e tal e que se falhares morres. Isto na melhor das hipóteses, claro. Depois há aqui a descrição de vários tipos de escravatura e tortura.
- Alguma delas inclui fecharem-me numa sala com o Geraldus para toda a eternidade?
- Curiosamente envolve, como sabias?
- Tinha um palpite. Bom, mais um incentivo para vencer as provas que restam! – Diz Plínio, confiante.
A noite estava quase a chegar, por isso tinham de ir para o anfiteatro onde o poeta Imperceptibilus faria a sua aparição. Segundo Edgar, o poeta apareceria quando a lua estivesse no seu ponto mais alto. Chegaram ao local já a lua cheia brilhava num céu sem nuvens e sem estrelas.
- E agora, o que fazemos? – Pergunta Plínio.
- Bem, esperamos. – Diz Geraldus. – Depois, quando ele aparecer tu vais lá abaixo e logo se vê!
- É sempre a mesma coisa, só eu é que trabalho. Sim, há quanto tempo é que ninguém arruma uma prateleira na biblioteca?
- Está bem, rapaz, é verdade que te sobrecarregamos um pouco. Mas é para teu bem! – Diz Geraldus.
- Para meu bem, para meu bem…
- Olhem, segundo aqui os pergaminhos do Zeus, a ideia é teres uma tertúlia literária com o poeta e saíres sem que, espera lá que a letra é muito miudinha aqui… - Juristus aproxima o pergaminho dos olhos. – ah, exacto, “sem que desates a sangrar violentamente dos ouvidos e os teus olhos saltem das órbitas.”
- Que animador, Juristus, assim a Maria Alice já não vai querer ir lá lutar com ele. Ou fazer seja lá o que for… - Diz Geraldus, irritado.
- Pelo menos já sei o que tenho de fazer… Portanto, quando ele aparecer vocês tapem os ouvidos. Eu logo vejo o que eu faço.
- Olha, sempre podes tapar os ouvidos com os pêlos sem ele saber. Aposto que nenhum som consegue furar elas parede pilosa. – Aconselha Geraldus.
- Deixa lá, eu lá me safo…
Plínio desceu amedrontadamente as escadas do anfiteatro, à espera que a lua atingisse o seu ponto mais alto. Parou a meio das escadas e olhou para trás, para ver se Geraldus e Juristus não tinham fugido. Quando fixou os olhos neles, eles estavam a apontar para baixo e a esbracejar. O anfiteatro era monstruoso, por isso Plínio não percebia o que eles queriam dizer. Quando olhou para onde eles estavam a apontar, viu o Poeta Imperceptibilus, altivo, de livro na mão, a passear no meio do palco. Plínio desceu ainda com mais cuidado e aproximou-se dele.
- Ah, tenho público hoje, finalmente… Amaldiçoada existência que me aprisiona neste anfiteatro vazio… Até que hoje, que vejo eu? Um ursinho de peluche vivo, caminhando na minha direcção… Aproxima-te, pequenino, aproxima-te… Queres que te leia um poema?
.- Não, deixe lá isso…
- Eu insisto, deixa lá ler-te um poema meu, uma estreia!
- Eu estou bem, a sério, não se incomode!
- Mas olhe que não me custa nada, aliás, tenho todo o gosto, vamos lá…
- Fica para a próxima, eu também estava aqui só de passagem.
Ao dizer isto, Plínio espeta a espada no poeta, que parecia tão de carne e osso como ele. A espada fica presa no seu abdómen, enquanto continua a falar.
- Esta agora… Que maleita desafortunada, desta não estava à espera. És um publico difícil é?
- Desculpe lá mas é que eu sou um gladiador e estas coisas surgem por instinto e…
- Ah, gladiador, então tenho o poema certo para ti:

“No retraimento da irrevogável magnificente noute,
Aportou um denodado ermo, desamparado,
Cheio de tíbio e sequidão, com larica e enfastiado
Levando somente consigo uma expectação improrrogável.
O juvenil herói caminhou por várzeas e flumes,
Não abdicou ante as terrificantes procelas.
Levava uma espada com extensa gadanha
E uns pelos abstrusos acachapados na sua proba armadora”

- Oh senhor poeta, - Diz Plínio, com as mãos sobre os ouvidos. – Já pode parar, já percebi a ideia.
- Mas ainda continua:

"O herói abalou para o insigne coliseu
Sem pavor de César e dos devassos corteses
Altercou, acabrunhou, pungiu, exsudou
E no fim de tudo, quando a lufa-lufa feneceu, todos avassalou."

Plínio sentia a cabeça prestes a rebentar, sentia que o fim estava perto. As palavras labirínticas de Imperceptibilus estavam a destruir-lhe os ouvidos e os neurónios. Mas foi aí, num lampejo de memoria que as palavras de Sócrates fizeram efeito. Então Plínio, com o tom de voz mais alto do que o de Imperceptibilus, começou a dizer:
-“Pertenço irremediavelmente à classe dos mansos refugiados em tábuas, reflectiu ele ao assinar o nome no livro que o continuo lhe estendia, velho calvo habitado pela paixão esquisita da apicultura, escafandrista de rede encalhado num recife de insectos, à classe dos manso perdidos refugiados em tábuas a sonharem com o curro do útero da mãe, único espaço possível onde ancorar as taquicardias da angustia!”
- O quê?!!? – Grita Imperceptibilus de agonia. – Nem eu percebo isso! Mas o que é isso? Mas como?
- Fácil, caro poeta. Lúpus Antunes, conheces? Trovador lusitano, apenas eu consigo lê-lo. E aprecia-lo.
- Ah, a dor! A dor! Como consegues, maldita alma, como consegues!
E Imperceptibilus desfez-se numa nuvem de fumo. Geraldus e Juristus desceram rapidamente o anfiteatro.
- Bom, o trabalho está completo, os meus parabéns! – Diz Juristus, enquanto aponta tudo no seu caderninho.
- É assim, não sei o que lhe disseste, mas fica desde já sabendo que eu nunca o vou querer ouvir! – Diz Geraldus, orgulhoso de Plínio.
- Descansa, nunca to direi. Voltemos para Roma…
Ao chegarem a Roma, foram recebidos por Menditus, feliz por terem ultrapassado mais um trabalho.
- Parabéns meus amigos corajosos!
- Qual parabéns qual que! – Grita Geraldus. – Tu és um vendido! Vendes-te para onde te oferecerem mais um sestércio!
- Eu?
- Sim tu! Andavas sempre connosco e agora estás do lado deles.
- Mas do lado de quem? Eu só fico do lado da minha mulher. E ás vezes por baixo. E por cima. E por…
- Já chega! Já percebi! – Diz Geraldus. – E depois ainda te queixas! Vê lá é se da próxima vez vens connosco.
- Prometo que ajudarei! Agora, vamos festejar!
E assim foram, para a nova biblioteca, festejar. Menditus tinha dado a sua palavra, portanto ele iria ajudar no próximo trabalho. Plínio teria de fazer bem a alguém, sem se prejudicar. Era talvez o mais difícil dos trabalhos…

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