XVII - In Periculo Non Est Dormiendum

Depois daquela bonita e proveitosa viagem pelo velho Egipto, a vida tinha regressado à normalidade. Durante uns dias não houve qualquer tipo de trabalhos (especialmente para Geraldus), e tudo decorria dentro da normalidade. O trabalho na biblioteca estava a agradar sobremaneira a Plínio, considerado já por muitos o mestre das devoluções. Outra especialidade de Plínio era a limpeza do cotão atrás das estantes. Curiosamente, depois de limpar o cotão, Plínio oferecia aos sem-abrigo umas camisolas que afirmava serem de lã. Plínio pensou em como seria bom que a vida fosse assim tão simples, sem aquelas chatices que qualquer pessoa tem que enfrentar no dia-a-dia: monstros, criaturas do outro mundo, Geraldus, etc. Mas também sabia que tinha que continuar a cumprir o acordo com Zeus, portanto estava na hora de seguir para a Ibéria, em busca do Jardim das Hespérides onde, de acordo com a lenda, estariam as Nêsperas mais doces que o homem alguma vez provou.
Por ser uma viagem longa, iam partir durante a noite. Assim, além de seguirem pela fresca, não havia o risco de Geraldus se atrasar. Já com tudo pronto, estava na hora de partir, e Menditus ultimava o fecho da biblioteca:
- Deixem-me confirmar tudo, antes de partirmos... Chaves... Livros... Janelas fechadas... Bem, parece-me tudo em ordem. Podemos ir!
Edgar, Gaius e Plínio já se encontravam na rua à espera de Menditus e Geraldus. Quando Menditus se preparava para sair, reparou que tinha deixado uma vela acesa.
- Geraldus, importas-te de ir ali apagar aquela vela, que eu estou muito carregado? A chave está aqui na porta, fecha quando saíres. Até já.
Geraldus acenou com a cabeça e ficou a olhar para a vela. O fogo hipnotizava-o. A chama bailava no ar e o olhar de Geraldus bailava com ela. A hipnose de Geraldus foi quebrada quando Plínio o chamou lá de baixo. Geraldus olhou para a saída mas voltou rapidamente a atenção para a chama. Quando foi chamado novamente, e já notando alguma impaciência nas vozes dos seus amigos, Geraldus decidiu ir apagar a vela e sair. Mas não lhe apetecia entrar lá outra vez. E a chama era tão bonita. E não lhe estava mesmo nada a apetecer ter de descer dois degraus e soprar.
- Hmmmmm... É só uma vela, também que mal é que pode acontecer? – Diz Geraldus, para si mesmo, enquanto tranca a porta e começa a descer as escadas para se encontrar com o resto do grupo.
Durante a viagem cada um ia falando das experiências que mais o marcou, e o que esperava do futuro. Até que chegou a vez do jovem Plínio:
- Quando eu estava na Grécia conheci muita gente interessante... Já vos falei de Sócrates e da obsessão pela minha barba?
- Já! – Respondem todos em uníssono.
- Então, e de Aristóteles, já vos falei?
- Curiosamente, não... – Diz Geraldus, visivelmente aborrecido.
- Então vou contar. Aristóteles era um senhor de idade, dizem que tinha sido um grande filósofo. Mas eu via-o sempre tão sozinho, num banco de jardim... Então um dia decidi fazer-lhe companhia. Falámos um pouco, e ele era realmente interessante. Comecei a visitá-lo regularmente. E foi à terceira visita que ele tinha necessidade de afecto.
- Necessidade de afecto? – Pergunta Gaius.
- E como é que descobriste isso? – Inquire Edgar.
- Simples. Eu estava a falar com ele sobre a metafísica do pêlo facial quando, de repente ele segura a minha mão e começa a fazer me festinhas na palma da mão.
Começaram todos a rir-se estrondosamente.
- Estão se a rir do quê? Ele queria afecto!
- Plínio, não achaste nada estranho? – Pergunta Menditus.
- Não... ele sorria muito e babava-se, quando fazia isso... Mas nada de mais. Era apenas um velhinho à procura de afecto.
- Era. Pois. Mas estavas era a dar o afecto no sítio errado! – Diz Geraldus, enquanto se riam perdidamente. – O Plínio é namorado do Aristóteles! Ahaha! Mais um bocado tinham ido para o Requintus!
- O Requintus? O que é isso? – Pergunta Plínio, confuso.
- Não sabes o que é o Requintus? – Perguntam todos, novamente em uníssono.
- Não.
- Eu calculei. – Diz Geraldus. – É o local onde os homens levam as amantes. É natural que não soubesses o que era, pois falhas logo na premissa do “homem”.
- Não sejas assim para o rapaz. – Diz Menditus.
- Eu não sabia nada disso. Sou ingénuo, o que é que querem?
- Então, Ingénuus, diz-me lá, e a Lagoa Azulis, conheces? – Pergunta Geraldus.
- Ah, pois, ora bem, sobre isso não me pronuncio.
- Não me digas que ias para lá com o Aristóteles! – Diz Menditus, a tentar conter o riso!
- Não, não ia... Mas agora isso não interessa. Ainda falta muito para chegar?
- Um bocado. – Diz Gaius. – Oh Geraldus, estou para perguntar-te isto à muito tempo.
- Se queres perguntar como é que eu conquisto tanta fêmea, podes esquecer que isso é um segredo milenar.
- Não, não é isso. Eu seguia o mundo das lutas no Coliseu com atenção, e não me recordo de nenhum Geraldus, grande gladiador.
- Ah não?
- Não.
- Ah pois. É que isso tem uma explicação sabes...
Quando Geraldus ia a dar a sua explicação, surge, no meio da estrada um fumo verde, e aparece a Deusa Diana.
- Olá cavalheiros.
- Deus Diana... – Diz Edgar enquanto faz uma vénia. – A que devemos a honra da visita?
- Queria falar ali com o jeitoso...
- Ah, pode falar Diana! – Diz Plínio, sorridente.
- Não é contigo Urso Carinhoso, é ali com o fininho, o vozinhas. Psht, oh menino, sai de trás do Gaius. Anda cá falar comigo.
- Eu não estava escondido, estava só à procura de uma coisa.
- Já vi o que fizeste ao meu templo...
- Ah isso, pois é que não pude acabar, o empreiteiro não pagou e os fornecedores fizeram greve, e há só um estafeta...
- Desculpas... Tens a certeza que não és lusitano?
- Tenho.
- Ninguém diria.
- Mas eu hei-de acabar...
- Não te preocupes com isso, não é preciso...
- Não? – Geraldus ficou confuso, e depois virou-se para Menditus, dizendo em voz baixa. – As gajas não me resistem vês?
- Eu ouvi isso! – Grita a Deusa, fazendo uma muralha de fogo à volta da carroça.
- Eu estava só a brincar, aliás, estava a referir-me ao Plínio e tudo, não vejo mais gajas aqui.
- Tenho outro trabalho para ti. Aproxima-te de mim.
Geraldus aproximou-se a medo.
- Então fininho, tens medo de mulheres é? – Pergunta a Deusa, num tom jocoso.
- Não, mas é que fogo e magia não são bem do meu agrado...
- Aproxima-te mais. O que vou te dizer é para ti, e só para ti. E irás cumpri-lo.
A Deusa falou ao ouvido de Geraldus, perante o espanto dos presentes. Em seguida, despediu-se deles e evaporou-se, enquanto Geraldus voltou para junto deles.
- Podemos partir? – Disse Geraldus, claramente em estado de choque.
- Mas o que é que ela te disse? – Pergunta Plínio, curioso.
- Não posso falar disso, peço que me respeitem... – Diz Geraldus, sentando-se no seu local.
A viagem continuou com um silêncio pouco habitual, especialmente da parte de Geraldus. Chegaram à Ibéria, o Jardim das Hespérides era num vale isolado, longe de qualquer sinal de civilização.
- Ora portanto, resumindo, é só eu ir ali, subir a uma árvore, tirar uma nêspera e comê-la? E levar umas quantas para mandar entregar no templo do Zeus?
- É isso. – Afirma Gaius.
- Isso fazia eu no Bairro Irenus, com o Kodakius. De olhos fechados.
- E depois trocavam as nêsperas por beijinhos? – Diz Geraldus.
- Não haviam lá mulheres.
- Não, eu estava a falar entre vocês...
- Onde é que está a Deusa para te silenciar quando é preciso? – Diz Plínio, desesperado. – Alguém me quer explicar onde é que está a dificuldade disso?
- Está aí mesmo. – Diz Gaius. – Não conseguimos encontrar nada nos nossos arquivos relativamente a isto. O local foi fácil de encontrar, nas não encontramos a razão de nunca ninguém ter apanhado aqui umas nêsperas. O Hércules apanhou umas maçãs... Mas não tocou nas nêsperas.
- Sumo de Nêspera não é para qualquer um! – Exclama Geraldus, com o seu habitual ar depravado.
- És o cúmulo da decadência humana...- Diz Plínio.
- E tu, Mr. Lagoa Azulis?
- Vá, parem lá com isso... Plínio, tenta ir lá. Mas vai com cuidado. Nós ficamos aqui para te avisar de algum perigo.
Plínio deslocou-se para o campo, viu a primeira nespereira e subiu sem dificuldade. Mas não conseguia tocar nas nêsperas, como se um campo de força as guardasse.
- Atenção Plínio! – Avisa Edgar.
Uma jovem em trajes menores corria alegremente pelo campo. Subiu também a uma nespereira, tirou a nêspera, comeu, e voltou a correr para longe.
- Como é que ela fez aquilo?!
- Não sei... – Diz Menditus. – Plínio! Tenta falar com ela! Usa o teu charme natural!
Plínio desceu da árvore, penteou o cabelo e os pêlos do peito, e correu atrás da misteriosa jovem. Plínio era bastante rápido, por isso apanhou-a sem dificuldade.
- Ora então bom dia. Que belo dia ahn? Mas claro, nada comparado com a beleza que a caracteriza, mais bela que os undíferos ramos da nespereiras sagradas, húmus da vida divina aos meus olhos!
- O quê?
- És gira.
- Ah. Obrigado. E quem és tu?
- Plínio Plagius. O Gladiador.
- Nunca ouvi falar.
- É natural. Eu nunca entrei no Coliseu.
- Coliseu? Também nunca ouvi falar. Sabes que eu saio pouco. Desço do céu, como umas nêsperas, e volto para perto do meu pai, Atlas. Só nós é que conseguimos tocar nas nêsperas. Mas o meu pai nunca mais quis voltar cá abaixo, depois do que aconteceu com o Hércules... Ele foi enganado, mas eu aprendi a lição.
No topo do vale, os restantes viajantes estavam espantados com Plínio.
- Eu tenho certeza absoluta, mas tão absoluta como eu ser a coisa mais desejas pelas mulheres do mundo, o Plínio nunca falou com uma mulher durante tanto tempo.
- Não percebo porquê... – Diz Menditus.
- É, agora que dizes isso é realmente estranho. As mulheres geralmente têm muita coisa em comum. – Diz Geraldus.
Entretanto Plínio e a jovem continuavam a conversa.
- Sabes que, eu até sou capaz de te dar uma nêspera. Mas só uma...
- E que queres que eu faça em troca?
- Tens de fazer o mesmo que Hércules, segurar o céu nos ombros.
- Ter o peso do céu sobre mim, isso é altamente filosófico.
- Bem, vou apanhar umas nêsperas para o meu pai, estás pronto? Segura!
De repente o céu abateu-se sobre a terra, pousando violentamente nos ombros de Plínio. Geraldus e os outros ficaram espalmados contra o topo do monte. A jovem apanhou uma cesta de Nêsperas que colocou num cesto.
- Pronto, estas são para o meu pai. Esta é para ti. Abre a boquinha!
- Não, espera, espera. Podes só segurar aqui no céu enquanto eu aperto a sandália?
- Ah, claro!
Plínio passa o céu para as costas da jovem e pega na cesta e começa a fugir. Esta, furiosa por ter sido enganada, coloca o céu no local e corre atrás de Plínio, mas este consegue abandonar o vale antes de ela o apanhar. Só que a jovem não estava sozinha. Plínio passa pelos outros a correr desalmadamente.
- Fujam! Caraças! Fujam!
- Fujam? – Pergunta Menditus. Quando este olha para a frente vê um exército de jovens semi-nuas a correr na direcção deles.
-Lá está ele... Vêm aí umas gajas meias nuas e este diz-me: fujam! O raça do homem não aprende! – Diz Geraldus. – Ora bem! Fila indiana, uma de cada vez, ou duas então se insistirem! Vamos lá a manter a ordem, meninas!
Edgar e Gaius puxaram Geraldus para cima da carroça e arrancaram a toda a velocidade, apanhando depois Plínio em andamento.
- Vá Plínio, só falta comeres a nêspera, e o trabalho está completo!
- Não posso comer...
- Porquê? Despacha-te antes que elas nos apanhem!
- Mas é que...
- Desembucha homem! – Diz Menditus.
- Eu só gosto de comer Nêsperas aos gominhos... A minha mãe corta-me sempre a comida aos gominhos.
- Ahahaha – Riem todos. – Gominhos!
- Não gozem...
Edgar, só com uma palavra mágica partiu a nêspera em gominhos e lá Plínio comeu a nêspera e o carimbo surgiu no pergaminho.
Ao chegarem à fronteira da Gália com a Itália, começam a ver uma enorme coluna de fumo. Primeiro pensavam que se tratasse de um vulcão, mas ao aproximarem-se de Roma verificaram que era um incêndio. O grande incêndio de Roma.
- Ninguém sabe como isto começou... – Diz um transeunte para outro.
- Ouvi dizer que foi uma vela não apagada numa biblioteca. – Diz outro interveniente.
- Eu acho que foi o Nero! – Diz Geraldus da carroça.
- O Nero?!
- Sim, o Nero. Então, não se vê logo? Foi o Nero!
A palavra espalhou-se e a ideia geral é que tinha sido Nero que, por sua vez, culpou os Cristãos pelo incêndio. Agora tinham de procurar um novo local para fazer a biblioteca. Os Cristãos eram perseguidos, Roma e arredores estavam devastados, mas não era por isso que Geraldus não conseguia dormir. Atribuir as culpas aos outros não lhe tirava o sono... Mas as palavras da Deusa ecoavam na sua cabeça...

Sem comentários: