XV - Obtorto Collo

De regresso a Roma, Plínio esperava, junto de Menditus, o regresso de Geraldus. Plínio estava exausto, mas um novo dia tinha chegado e com ele mais um trabalho. O trabalho na biblioteca estava a decorrer como normalmente, mas Plínio estava preocupado com a Hydra.
- Oh Menditus, diz-me...
- Sim, Plínio?
- Achas que o Geraldus vai terminar o Templo de Diana a tempo?
- Não.
- Não?! Mas a Deusa pediu!
- Ele? Trabalhar? Nem que Zeus pedisse! Nem que a vida dele dependesse disso.
- Mas a Deusa...
- A Deusa? Mais rapidamente ele fingia que estava a trabalhar para poder espreitar para o decote dela do que fazia qualquer coisa útil. Vais ver que não saiu coisa boa dali...
- Ah, eu já sei como ele é, mas, não acredito que engane a Deusa...
- Olha, aí vem ele, vamos perguntar-lhe. Geraldus, grande professor, conta-me, como decorreram as obras em Pax Júlia?
- Ora bem, as obras... As obras... – Diz Geraldus, tentando lembrar-se. – Correram, bom, correram, lá estão elas a correr, a esta altura... Correm que se fartam.
- Não fizeste nada pois não? – Pergunta Menditus.
- Não... Quer dizer, fiz. Enquanto a Deusa lá esteve. Meia dúzia de colunas. Uns degraus. Não deu para mais.
- Mas não deu para mais como?! – Pergunta Plínio, chocado.
- Não deu... Olha estes abdominais. Sente só. Valem ouro, miúdo. Gajas, gajas que gemem só por ver estes abdominais. Olha se fico com uma hérnia? O que é das mulheres sem mim? Não dá. Eu sou de utilidade pública. Preciso de estar em forma! – Diz Geraldus, enquanto mostras os músculos do braço.
- E se ela se vingar de nós? – Plínio não conseguia esconder a preocupação.
- Achas mesmo que se vinga? O meu charme desarma a logo. Basta, enquanto falar com ela, dizer qualquer coisa como “ah e tal está calor” e levanto a camisola e mostro a barriga, e ela cai aos meus pés.
- Isto ainda vai acabar mal...
- Pois vai! – Exclama Geraldus. – Onde é que se viu uma gaja a mandar o macho latino trabalhar? Nunca. Isto não sai daqui ahn?
Plínio e Menditus encolheram os ombros e voltaram ao trabalho...
- Muito trabalham vocês. – Observa Geraldus, enquanto estica os pés em cima da mesa. – Eu também trabalhava, e muito, antigamente. Eram filas de caixas até à saída da Biblioteca, e só eu é que trabalhava!
Menditus parou o que estava a fazer e pediu a atenção de Plínio.
- Ouve esta história que é boa.
- E depois, eu até devia ter sido aumentado! Sim, porque propuseram um aumento. Porque só eu é que trabalhava, e haviam caixas até à saída, eram filas de caixas, caixotes, caixinhas, nem se conseguia andar. Vê lá, uma das colegas até ia desmaiando, tal era a falta de ar que as caixas provocavam. Montes de caixas. E só eu é que trabalhava.
- Mas ele não se cala com aquilo? – Diz Plínio baixinho para Menditus.
- Não, ele agora fica ali a dizer aquilo durante meia hora.
- Ahhh...
- E as caixas? Já vos contei das caixas? Iam até à porta. Pelo menos. Dizem que saíam lá para fora, mas eu não vi porque estava cá dentro a trabalhar.
Nisto chegam Gaius e Edgar, prontos para seguir para o próximo trabalho.
- Então Menditus, como vão as coisas? – Pergunta Gaius.
- Vão bem, acho que podem partir assim que estiverem prontos.
- Já estamos, não é camaradas? – Diz Edgar, enquanto dá uma chapada nas costas de Geraldus.
- Olha o material oh faz favor, que isto é caro e de qualidade – Diz Geraldus, incomodado.
- Por mim, seguimos agora! – Diz Plínio, confiante.
- Então vão, e boa sorte, a Hydra não deve ser fácil...
Os quatro aventureiros partiram rumo à entrada principal do esgoto, onde teriam de percorrer um labirinto subterrâneo até chegar ao local onde a Hydra tinha sido avistada pela última vez.
- Oh, oh Plínio... Este cheiro, é do esgoto ou trouxeste Seitan?
- Trouxe Seitan, nunca se sabe se será preciso...
- Desta vez não vai ser, - Diz Gaius – A Hydra não é muito de comer, ela gosta mais de enrolar as cabeças à volta dos corpos e esmagar.
- Ah, pelo menos estão a avisar-me as coisas com antecedência, assim dá para um homem trabalhar.
- O quê? Mas vem mais alguém lutar com a Hydra? – Pergunta Geraldus.
- Não, porquê? – Diz Plínio, confuso.
- Ah bom, é porque falaste em homem e eu não vejo nenhum, portanto agora fiquei na dúvida. Mas continua, Plínio...
- Chegamos ao local onde habita a Hydra rapidamente... – Diz Edgar, consultando os seus mapas...
- Epá, estou a gostar muito de irmos os quatro fazer o trabalho. Acho que damos uma bela equipa. – Diz Plínio – Podemos ser a fraternidade do Seitan? Podemos chamar-nos assim?
- Se dependesse de ti, éramos a maternidade, fraternidade implica homens. Mas percebo a ideia. – Contrapõe Geraldus.
- Chiu, não digam nada... Parece que ouvi qualquer coisa... Conseguem ouvir? – Pergunta Gaius.
- Sim, são as gaj...
Antes de Geraldus conseguir iniciar o seu discurso já estava com um saco na cabeça.
- Pronto, assim trabalha-se melhor.
- Nem mais. Mas eu não ouço nada... – Diz Plínio enquanto vai olhando à volta...
De repente, no meio dos túneis, vão vendo um vulto gigante a passar rapidamente, fazendo um barulho horripilante a cada passagem. O monstro parecia estar por todo o lado. Os quatro juntaram-se, como meio de se defenderem.
- Que é isto? – Diz Geraldus, sem conseguir ver por causa do saco na cabeça. - Das duas uma, ou me encostei a um urso ou o Plínio está demasiado perto de mim para a minha segurança, toca a afastar!
- Mantenham-se juntos! – Diz Gaius.
- Isso é fácil de dizer para ti Gaius, que não tens um Urso Pardo abraçado a ti!
- Silêncio! – Impõe Edgar. – Sigam-me, temos de alcançar aquele local mais aberto antes da Hydra. Rápido!
Geraldus era puxado por Plínio, enquanto Gaius e Edgar iam verificando os caminhos
Chegaram ao local pretendido, e um encontram um silêncio inquietante... A água quase não corria, parecia ser pouco funda, e não havia qualquer tipo de ruídos. Plínio passou a sua tocha para Gaius, e começou a investigar o local, já armado da sua espada e escudo. – Edgar, não tens que rezar hoje?
- Hoje não, a Hydra já anda por aí.
- Que pena! – Exclama Geraldus. – Acho a tua reza tão familiar, parece que já ouvi aquilo antes... Não sei...
- Cuidado Plínio. – Recomenda Gaius, enquanto ia colocando as malas num canto daquela enorme sala.
A sala era quadrada, tinha correntes no tecto e uma espécie de jaula, com uma entrada em arco, na ponta oposta onde eles se encontravam, e um rio de esgoto, aparentemente pouco profundo, mesmo à sua frente...
- Então e agora? Como é que eu faço a Hydra aparecer? Ela andava aí ainda agora...
- É assim, a Hydra, se for gaja como o nome indica, está aí a aparecer aos meus pés, a implorar que eu lhe dê carinho.
- Geraldus, a Hydra é uma espécie de serpente com muitas cabeças! – Explica Gaius.
- E então? Até as serpentes podem amar este corpinho! Sente os gémeos, vê a definição! E se tem mais cabeças quer dizer que tem mais olhos para ver melhor. Gaja sortuda...
As águas começaram a agitar-se, e os aventureiros juntaram-se mais, na expectativa. A água começou a desaparecer, e surgiu um guincho infernalmente agudo, que fez com que eles caíssem e tapassem os ouvidos. Do local onde havia a água surgiu então a Hydra.
- Credo! – Diz Geraldus, já sem o saco na cabeça. – Tem muitas cabeças! Tem, deixa cá ver, uma, duas, três, epá, muitas!
- E agora Gaius e Edgar?! O que faço?
- Bem, segundo a lenda, - Diz Edgar enquanto consultava uns pergaminhos. – Tens que cortar todas as cabeças dela. E não podes deixar que nenhuma cresça, porque senão faz com que nasçam ainda mais.
- Então e quantas cabeças são?
- Pelos meus cálculos, - Diz Gaius, enquanto ia fazendo umas contas. – São, ora bem, dois vezes três, seis, mais quatro, dez, vezes cinco, cinquenta, ora isso quer dizer que são... Infinitas. Infinitas.
- Infinitas?! Então como é que é possível derrotá-la?
- Geraldus, tu vais para ali chamar a atenção dela.
- Eu?! Nem pensar! Já comi cinza, já levei com uma seta mágica, nem pensar que vou ser aperitivo ali para a esquisitóide!
- Tem de ser! Põe te ali! – Diz Edgar, enquanto o empurra para uma plataforma na esquerda. – E leva isto! É o meu amuleto mágico!
- Amuleto mágico? – Pergunta Plínio. – Não devia ser eu que o devia ter?
- Qual mágico qual quê, aquilo é o resto do pão de anteontem.
- Ah...
- Gaius, vais pela esquerda, eu vou pela direita Vamos atrair o mais número de cabeças para nós, enquanto o Plínio vai subir para as costas dela.
- Certo!
A Hydra parou de andar de um lado para o outro, e centrou as suas atenções em Geraldus. Alinhou as cabeças e começou a aproximar-se dele.
- Oh Hydra, Hydrinha, então, sossega... – Diz Geraldus.
A Hydra põe os dentes de fora e guincha, provocando a queda de Geraldus.
- Eu tentei ir a bem, cabra, mas tu é que quiseste assim! – Diz Geraldus, enquanto levanta o pão duro de Edgar. – Morre com o meu amuleto! Morre! Magia! Si Cariño e coiso e tal! Magia!
A Hydra olha espantada para as figuras que Geraldus estava a fazer.
- Está a resultar, - Diz Gaius – Edgar, posiciona-te agora...
A atenção da Hydra estava agora repartida pelos três, enquanto Plínio esgueirava-se pelas suas costas. Mas, eles não estavam a contar que uma das cabeças se virasse para trás e visse Plínio, altamente sub-reptício, a escalar o dorso do animal. As cabeças atiraram os quatro para o chão, deixando-os à mercê de um ataque.
- Não está a funcionar! – Diz Edgar.
- Boa, génio! Foi preciso magia para perceberes isso? – Pergunta Geraldus, agarrado ao amuleto.
- Deixem comigo, tenho uma ideia. Tapem os ouvidos. Já! – Disse Plínio, virando agora a sua atenção para a Hydra. - Hydra, ouve lá, conheces Ética?
A Hydra parou de andar às voltas e parecia estar a ouvir Plínio atentamente...
- Como Doutrina Filosófica, a Ética é essencialmente especulativa e, a não ser quanto ao seu método analítico, jamais será normativa, característica esta, exclusiva do seu objecto de estudo, a moral.
Os olhos das várias cabeças da Hydra começaram a revirar-se.
- Não sei o que ele está a dizer mas está a resultar! – Diz Gaius.
- Aposto que ele está a glorificar a minha pessoa e a ameaçá-la com violência da minha parte – Diz Geraldus.
- Ética pode ser interpretada como um termo genérico que designa aquilo que é frequentemente descrito como a "ciência da moralidade", o seu significado derivado do grego, quer dizer 'Morada da Alma', isto é, susceptível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente a determinada sociedade, seja de modo absoluto.
As cabeças da Hydra começaram a apertar-se umas às outras.
- Portanto, a ética juntamente com outras áreas tradicionais de investigação filosófica, e devidas subjectividades típicas em si, ao lado da metafísica e da lógica, não pode ser descrita de forma simplista. Desta forma, o objectivo de uma teoria da ética é determinar o que é bom, tanto para o indivíduo como para a sociedade como um todo.
A Hydra agora guinchava de agonia, enquanto as cabeças iam morrendo, uma a uma, num suicídio doloroso.
- Eu acho que a Hydra está a pedir-nos ajuda. – Diz Edgar.
- Custa-me ver um animal sofrer assim tanto... – Diz Gaius.
- Enfim, a ética é julgamento do carácter moral de uma determinada pessoa.
E assim que Plínio terminou a frase, a Hydra caiu inanimada no chão e o pergaminho dos trabalhos tinha mais um trabalho completo. Edgar, Gaius e Geraldus levantaram-se, e saudaram Plínio.
- Como conseguiste, Plínio?
- Ética, meus caros, ética...
- Não sei o que é isso, mas parece doloroso! – Diz Gaius.
Os quatro voltaram para a biblioteca, pois era necessário assegurar o horário nocturno. Só faltavam mais nove trabalhos. E meio.

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