VIII - Potius Sero Quam Numquam

Plínio sentia-se um leão. Se os seus amigos o pudessem ver agora... Lembrou-se do seu amigo de infância, o escultor André Kodakius. Plínio lembrou-se de quando eles andavam com camisolas amarelas a combinar, e passeavam de mão dadas pelos campos verdes dos arredores do Bairro Irenus, apanhando nêsperas, na flor da juventude. Kodakius queria fazer esculturas dos maiores monumentos romanos e Plínio jurava que ia escrever belíssimos textos que ilustrassem as esculturas. Mas ele não sabia escrever na altura, o que de certa maneira inviabilizou o projecto. Isso e o facto de Kodakius se esquecer constantemente de iniciar a sua parte da obra.
Lá foi ele através da selva, descendo amiúde da carroça para perseguir zebras e antílopes. Claro que depois não os apanhava, mas só o facto de andar de barba ao vento a correr, com a túnica de filósofo cheia de sangue do leão e de terra africana fazia-o sentir-se vivo. E depois rugia. Depois voltava para a carroça, perante o olhar espantado dos seus cavalos. Decidiu passar ao largo de Roma, não queria aparecer em casa de sua mãe naquela figura, ela iria ficar preocupada. Ou então ia lhe dar uma sova por andar a sujar roupa branca acabada de lavar e com qualidade. De qualquer forma, era escusado dar-lhe trabalho, portanto, decidiu seguir directamente para a casa de Sancto Geraldus.
Ao passar na estrada romana que ladeava a casa de Sancto Geraldus, ficou espantado de não o ver à beira da estrada, mesmo à beirinha, a gritar para ele rugir. Plínio desceu da carroça.
- Geraldus? Sancto Geraldus?
Surgiu uma voz esganiçada e moribunda do nada.
- Aqui... Aqui jovem Plínio.
Plínio olhava à sua volta mas não via nada.
- Mas aqui onde? Geraldus?
- Aqui... Em baixo... Nos arbustos...
Plínio procurou à sua volta e deu de caras com Geraldus prostrado no chão, aparentando estar quase inconsciente.
- Geraldus! O que aconteceu contigo? Quem te deixou assim?
- Powerballus...
- Powerballus? Quem é?
- É a minha nova bola de exercício giroscópica, serve para fortalecer os braços e...
- Fortalecer os braços? Mas tu és treinador de gladiadores, tu és forte!
- Já fui mais, já fui mais... Vês este escadote aqui ao meu lado?
- Sim, porquê Geraldus?
- Apanha-o, por favor. Ele caiu-me na cabeça enquanto estava a rodopiar incontrolavemente devido à Powerballus. Quase que me acertou nas carótidas. Vê as minhas carótidas. Sente, sente.
- Não, obrigado...
- Vê como são salientes, posso morrer com apenas um corte de uma folha de uma árvore! Sente!
- Não, não, deixe lá isso. Dê cá a mão para se levantar - Diz Plínio, enquanto estica a mão para levantar Geraldus, que se desengonça todo quando Plínio o puxa.
- Cuidadinho com o material jovem! Há mulheres que pagavam milhões para ter isto - Diz Geraldus, enquanto aponta para o seu corpo.
- Ai sim? Então diga-me lá uma...
- Isso nomes... Nomes... Isso é irrelevante. Estás a ouvir? - Pergunta Geraldus, enquanto leva a mão ao ouvido.
- Não ouço nada. - Responde Plínio confuso.
- Não, ora ouve lá bem, espera... Ouve, ouve... Sim, consigo ouvir!
- Contínuo sem ouvir nada...
- Ao longe, por trás do horizonte, ouve... Parece um zumbido...
- Um zumbido?
- Sim, consegues ouvir?
- Não. Ouço um ou dois pássaros... E um maluco a delirar... Mas zumbido não...
- São os suspiros de milhares de mulheres quando pensam no meu nome!
- ....
- Plínio, conheces o Iuvenis.It?
- Não. Mas diz-me lá, porque é que raio sempre que eu venho ter contigo para um assunto, tu falas-me de outro.
- O Iuvenis.It...
- ...
- ... É uma espécie de catálogo de mulheres. É febra atrás de febra, sinto-me como César num banquete. É só escolher. Depois mandas uns pergaminhos ou uns fragmentos para elas, e elas vão te respondendo. Com sorte, ainda receber uma escultura delas nuas!
- Daí a força no braço...
- E depois podes encontrar-te com elas e fazer coisas malandras.
- E então, quantas é que já conheceste pessoalmente e fizeste... coisas malandras?
- Ora bem, isso então temos... Aquelas... Depois aquelas outras, mais a loura e a ruiva, mas a morena de peito descomunal, mas as gémeas siamesas...
- Não conheceste nenhuma pois não?
- Efectivamente, pessoalmente... Er... Não. Mas não é isso que interessa!
- Já vi que sim.
- É o prazer da conquista! Como um leão à caça e... Pera lá. Plínio, o teu olhar... A tua roupa... Encontraste o teu verdadeiro eu! És um leão. Ruge! - Diz Geraldus, entusiasmado.
- Agora não, mas já rugi. E vim aqui para me treinares. Quero vencer no Coliseu.
- Queres que faça de ti um homem?
- Sim! Seria muito bom!
- Não, isso não. Não faço milagres. Apenas treino. Mas farei de ti... Um leão!
- Não me parece nada mal não... Então, por onde começamos? - Diz Plínio, enquanto saltita e faz flexões.
- Primeiro que tudo páras com essas coisas abichanadas que esás a fazer. Depois, vamos ali a casa tomar um lanchinho e depois treinarmos.
Sancto Geraldus caminhava trôpegamente, tendo de ser apoiado por Plínio. Geraldus falava um pouco do seu curriculum, contava as suas velhs glórias perante algum espanto do jovem. Eram realmente histórias impressionantes. Sentaram-se dentro de casa e comera, descansademente. Geraldus tentou explicar a Plínio que o leite era fundamental na sua dieta, bem como os Bollicaums, pães com chocolate que lhe davam força e ânimo para continuar. Plínio sugeriu que o treino começasse antes do início da noite, mas Geraldus disse para ele ter calma. Mais valia tarde que nunca, pensou Plínio.
Plinio levantou-se aos primeiros raios de sol, que entraram de rompante pelo seu quarto sem pedir autorização. Ajeitou a barba, colocou a vestimenta de gladiador que Geraldus tinha em casa, como recordação e foi a correr para a entrada da casa, onde iria dar início ao treino. A armadura balançava um pouco e a máscara prendia-lhe a barba, mas não era isso que ia impedir Plínio de treinar afincadamente. Quando chegou ao local do treino não viu Geraldus, mas calculou que ele demorasse mais um pouco a arranjar-se, por causa dos seus cremes para a pele. O tempo foi passando e Plínio já esperava sentado, divertindo-se a filosofar como modo de passar o tempo. Uma hora depois, farto de esperar, dirigiu-se até ao quarto de Sancto Geraldus e bateu à porta.
- Geraldus? Estás vivo, homem?
- Arhn... - Boceja Geraldus.
- Ainda está a dormir? - Diz Plínio, irritado - E o meu treino?
- Arrrrrhhhnnnn, Plínio... Que sono... Primeira lição... O mestre deve dormir até uma hora depois do meio dia. Pelo menos. Em dias de maior cansaço, só se levanta duas horas depois do meio-dia. Fim da primeira lição. Dá dez voltas à casa ou qualquer coisa... - Responde Geraldus, por entre intermináveis bocejos.
- Raios! - Exclama Plínio.
E assim Plínio ficou a conhecer os hábitos de trabalho de Geraldus. Lá deu as dez voltas à casa e ficou descansado a filosofar até Geraldus acordas. Aí começaria o treino a sério. Ou pelo menos era isso que era suposto acontecer, mas com Geraldus nunca se sabe.

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