VII - Leonina Societas

Com o ego renovado pela vitória, mas a consciência pesada pelo modo como a alcançou (especialmente contra Jesus Cristo, agora não iria para o céu certamente!), Plínio seguiu para África, à procura de Cipião.
A viagem foi dura, através de densas selvas e longos desertos, mas Plínio, dono de uma vontade inabalável, chegou são e salvo ao seu destino. Cipião tinha escolhido recolher-se na África Meridional, depois da traição que sentiu por parte de Roma. Causava algum mistério como é que este velho General o podia ajudar, e porque é que Jesus o tinha mandado para aqui. Talvez fosse uma partida. Jesus era brincalhão. Quem não se lembra de quando Jesus transformava o vinho em água, deixando os alcoólicos furiosos ou quando transformava o pão em barro, fazendo os homens cuspirem figuras de cerâmica? Ele podia bem tê-lo mandado fazer esta viagem de um mês para depois Plínio chegar lá e ter de voltar para trás, aparecendo um bilhete em casa do Cipião a dizer: “Onde estão as cruzes agora? Beijinhos, Jesus!”.
Plínio chegou a uma aldeia habitada, com uma enorme casa no centro dela. Era o lar de Cipião, o local onde ele se queixava das suas traições e se vangloriava dos seus feitos militares. O problema era que os nativos não percebiam nada do que ele dizia, limitando-se a acenar a cabeça e a tentar imitar os gestos estranhos dele.
Aproximou-se da porta, e quando ia a tocar esta abriu-se… Plínio pediu licença e entrou, e deu de caras com Cipião a dormir, sentado numa cadeira que mais se assemelhava a um trono. Quando deu o terceiro passo dentro de casa, a madeira estalou e Cipião acordou sobressaltado:
- Asdrúbal!
- Quem eu? – Respondeu Plínio, assustado.
- Asdrúbal, nunca vencerás os meus exércitos! E… Espera lá… – disse Cipião, surpreendido – quem és tu e o que fazes na minha casa?
- O meu nome é Plínio Plagius e…
- Já sei, já sei, Jesus disse-me tudo num sonho. Vens cá à tua procura não é rapaz?
- Jesus fala consigo nos sonhos?
Cipião salta para a frente e dá uma chibatada na cabeça de Plínio.
- Auuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu! – Uiva Plínio.
- Silêncio! Não se responde a uma pergunta com outra pergunta! Entendido?
- Mas ele falava mesmo?
Cipião dá lhe nova chibatada.
- Ai! Está bem, já percebi…
- Sim, Plínio – Diz Cipião calmamente, enquanto se sentava novamente no trono – Jesus fala comigo nos meus sonhos… Estou a pensar em escrever um livro, mas Jesus rapidamente me dissuadiu dessa ideia.
- Acha que não ia ter sucesso?
- Não. Primeiro, porque ele ainda está vivo. Segundo, porque ele falou numa cabrita qualquer, não percebo o que é que os animais têm a ver com isso, mas hei, ele é Jesus, não se discute com Jesus não é?
- Por acaso…
- Não me digas que enfrentaste Jesus, o Todo-Poderoso!
- Isto dito assim de repente até soa mal…
- Não posso acreditar!
- É verdade.
- E diz-me jovem Plínio, o que sucedeu?
- Bem, eu… Eu ganhei.
- Ganhaste? Mas como é possível?! – Pergunta Cipião, escandalizado.
- Eu, bem… Como é que hei de dizer isto… Fiz batota…
- Batota?
- Sim.. Quer dizer… Eu disse a Jesus que vinham aí uns romanos com umas cruzes e…
- Ah, sei bem o problema que tem com cruzes…
- Ele distraiu-se e eu ganhei. A barba é forte. Não é para me gabar, mas Sócrates era admirador da minha barba.
- Isso não me diz nada. Plínio, sei que dentro de ti está um lutador. E eu vou provar-te isso mesmo.
- Mas eu não gosto de lutar. Já o Sacto Geraldus diz a mesma coisa!
- Conheces Sancto Geraldus? Óptimo. Metade do trabalho está feito então. Irás treinar aqui comigo durante duas semanas, depois seguirás para Roma e encontrarás Sancto Geraldus no sítio do costume, agarrado às costas, e ele fará…
- De mim um homem?
- Não, ele é um bom treinador mas não faz milagres.
- Ah, bom…
Plínio não percebia como é que estava a ir na conversa deste lunático reformado, mas a verdade é que ele se conseguia rever nas palavras de Cipião. O treino começou lentamente, com alguma corrida. Plínio sentia-se como peixe na água, pois ele adorava correr e já estava a sentir falta de dar corda às pernas e correr por aí. Ao terceiro dia de corridas, Plínio começava a achar algo estranho.
- Cipião, grande Cipião, diz-me uma coisa…
- Sim, reles aprendiz, que queres de mim?
- Porque é que estou aqui há três luas e não fiz outra coisa senão correr?
- Compreendo a tua dúvida…
- E não é só isso, porque é que raio me manda sempre correr pelos mesmos sítios? É só gazelas mortas… Se eu não soubesse que não era capaz disso, eu diria que me está a mandar aos leões…
- Leões? Que leões? Naaaaaaaaaa, nada disso, leões, andaste a beber, de certeza…
- Vou andar atento de qualquer forma…
- Sim, Plínio, nem eu queria outra coisa!
E lá foi Plínio a correr, saltando por cima dos troncos, das carcaças de gazela, dos restos de zebra, das crias de leão…
- Crias de Leão?!?!?! Oh não! – Exclamou Plínio – E agora?! Se aqui há crias também há leões, e eu tenho medo de leões! É melhor voltar para trás!
Assim que se preparava para voltar para trás, Plínio deu de caras com um leão. Era enorme, com uma juba imponente e dentes afiados. Plínio tremeu de medo. O leão aproximou-se dele e fixou os seus olhos nos de Plínio e deu-se uma estranha ligação. Plínio sentiu algo dentro dele como nunca tinha sentido antes. O leão sentou-se aos pés de Plínio e pôs a cabeça de modo a que Plínio pudesse afagá-la. Plínio esticou a mão receoso e tocou na cabeça do imponente animal, e sentiu uma calma e uma ligação que ultrapassava tudo o que tinha conhecido até então. Voltou a olhar o leão nos olhos e ali tudo se tornou claro: o pêlo, a vontade de comer, o gosto por carne crua, a vontade de copular várias vezes ao dia… Plínio apercebeu-se: ele era um leão. E aí rugiu, rugiu bem alto enquanto gritava, sou um leão. No meio da sua emancipação, Plínio nem tinha reparado no rinoceronte ameaçador que surgiu na mesma clareira. O rinoceronte carregou sobre Plínio, que foi derrubado pelo leão, para o salvar. Mas o rinoceronte, em fúria, atingiu o leão, deixando-o ferido e incapaz de salvar Plínio. Este pensou em correr, pensou em fugir, mas a ligação com o leão era demasiado forte. Então decidiu lutar com o rinoceronte. Quando este carregou sobre ele, Plínio passou a barba à volta de um tronco caído, e à passagem do rinoceronte, conseguiu que ele tropeçasse e caísse. Depois, foi apenas uma questão de lhe recitar alguns clássicos gregos de filosofia, nomeadamente no campo da ética, e o rinoceronte acabou por espetar o chifre nele próprio. Plínio sentiu o sabor da vitória, a adrenalina da luta. Era isto que ele iria fazer.
Voltou para junto de Cipião, com o leão moribundo e com a roupa ensanguentada.
- Plínio… Vejo que cumpriste o teu dever…
- Vou voltar para Roma. Quero competir no Coliseu. Trate do leão enquanto eu estiver fora. Voltarei para buscá-lo, quando for rico e famoso, quero tê-lo na minha vila particular.
- Assim o farás, Plínio, assim o farás.
Afagou a cabeça do leão mais uma vez, desejou-lhe as melhoras e caminhou para a sua carroça. Ao vê-lo partir, Cipião teve a certeza de que estava ali um campeão.

Sem comentários: