VI - Nemo Mortalium Omnibus Horis Sapit

Concentrado, Plínio arrumou as suas coisas, foi despedir-se de Rosus que entretanto tinha ficado extremamente orgulhoso do sucesso que ele obteve na companhia de Sócrates, e partiu rumo a Jerusalém. Outro dos motivos que lhe causavam alguma felicidade nesta inesperada viagem era a oportunidade de ver a sua mãe, e isso alegrava-lhe o espírito. Desta vez, teria uma carroça ao seu dispor, e já não teria de atravessar a Floresta dos Raminhos, o que era sempre bom. Claro que um encontro com Olívia ou Sancto Geraldus não estaria posto de parte, mas, de qualquer forma, Plínio não queria distrair-se do seu objectivo: chegar a Jerusalém e por a sua barba à prova contra o todo-poderoso. Foi despedir-se de Sócrates, o que resultou numa conversa deveras interessante:
- Sócrates, irmão, mestre, companheiro de tantas noites…
- Nessa noite eu devo ter bebido a mais, e acontece a qualquer um, no escuro…
-… Estava a referir-me às noites de Filosofia.
- Ah, bom. Diz-me, Plínio, é cera que tens na barba?
- Sim. Mas, deixemos a barba de parte. Diz me, Sócrates, achas que atingirei um novo plano metafísico na minha nova viagem?
- É que a barba está bonita: máscula, mas distinta. Com classe. Digna de um cidadão digno. Selvagem, mas um selvagem civilizado…
- Sócrates, a ética, a retórica…
- Pontiaguda, mas não ameaçadora, a tua barba é realçada sem dominar por completo a face. É um espectáculo á parte. Não quer brilhar sozinha, mas sabe a sua importância.
- A existência? De onde vimos? Para onde vamos? Quem sou?
- Não sei quem és, mas tens uma bela barba. Deves filosofar bem.
- Desisto. Adeus, mestre Sócrates.
- Adeus, Plínio, tem cuidado contigo. E com a tua barba.
E lá ficou Sócrates, a admirar a vasta barba de Plínio enquanto este abandonava a reitoria da Civita Universitárias. Já com a Grécia a uns dias de distãncia, Plínio deparou-se com Sancto Geraldus, parado na estrada, tal como da última vez.
- Ah, Plínio, vejo que aceitaste o meu convite!
- Não, Sr. Sancto, vou a Jerusalém encontrar-me com Jesus.
- Para lutar Plínio? Aposto que vais lutar. Está dentro de ti.
- Não, não vou lutar.
- Ruge Plínio. Solta o leão que há em ti.
- Não há qualquer leão – respondeu Plínio, contente com o facto de não ter voltado a sonhar com o leão que tanto o atormentou.
- Ruge.
- Até à próxima, Sancto Geraldus.
- Ruge!
Plínio seguiu o seu caminho, enquanto Geraldus ficava na berma da estrada, agarrado
às costas enquanto procurava no seu fragmento preferido, o Wikipedius, a razão para as suas dores. Decididamente Plínio não tinha sorte nos seus conhecidos. E nem sequer teve tempo para se recompor, pois ao passar ao largo da aldeia de Olívia foi perseguido por aldeães irados que gritavam justiça perante a tentativa de assassínio do Matador de Seitan. A passagem pelas aldeias era invariavelmente problemática, especialmente à noite, onde era confundido com um lobisomem, sendo diversas vezes perseguido por aldeães maníacos com tochas e ancinhos. Quando chegou a casa todo o seu bairro parou para o ver passar, na sua carroça, vestido na sua elegante túnica de filósofo e a sua imponente barba. Plínio estacionou a carroça, e seguiu para casa de sua mãe, onde esta o esperava de braços abertos. Plínio abriu a porta e correu para os braços da mãe:
- Mãe! Quantas saudades entopem a minha alma, a distância era uma corda à volta do meu pescoço e agora, a tua presença…
E, antes de ter conseguido dizer fosse o que fosse, já tinha levado um estalo da mãe!
- Plínio Gaspar Plagius! Olha-me para essa barba! Vou já buscar a rebarbadora! Deita-te aqui!
- Calma, mãe – disse Plínio, tentando conter as lágrimas – eu sou filósofo, preciso da barba!
- Precisas? Para quê? Fazes colecção de animais aí dentro é?
- Não mãe, é uma questão cultural.
- Cultura o tanas! Vai-te daqui antes que te arreie a sério!
Plínio deu um beijo à socapa na mãe e saiu porta fora. Embora o reencontro não tenha sido como ele tinha sonhado, foi fantástico para ele rever a mãe e sabe que ela também sentiu o mesmo. Quando chegou à carroça, tinha uma multa. A sua primeira multa. Plínio não ligou, até porque era a primeira, e provavelmente a última. Realmente, só alguém muito personagem é que apanha várias multas de estacionamento. E lá seguiu, descansado, o seu caminho para Jerusalém.
Pelo caminho ia vendo vários montes cheios de cruzes, e pensava para si mesmo como ficavam bonitos os montes, quem teria tido aquela brilhante ideia decorativa? Não sabia, mas gostava de descobrir, pois um dia, quando fosse o filósofo mais famoso e tivesse a sua vila particular, queria ter uma ou duas cruzes a ornamentar o jardim, onde iria filosofar até ao fim dos seus dias.
Já em Jerusalém, Plínio não quis perder tempo. Parou a carroça, num sítio duvidoso. Estava em Jerusalém, ninguém iria multá-lo ali. Seguiu, então em busca do Senhor Todo-Poderoso. Como poderia ele encontrá-lo? Enquanto pensava, ia caminhando pelas ruas de Jerusalém. Sentia que era um local especial, sem conseguir precisar a razão. Afinal de contas, ele vinha de Roma, capital do Império, e tinha vindo da Grécia, local máximo da cultura, porque é que este local lhe causava uma impressão tão forte?
Ao dobrar a esquina repara numa multidão ao rubro. Aproxima-se, calmamente, para ver o porquê de tanta excitação. E, no meio da multidão vê um homem, de braços erguidos aos céus, a distribuir pão pelos pobres, a curar os cegos e os surdos. Tinha uma imponente barba. Era ele. Era Jesus.
- Ora com licença, se faz favor – Diz Plínio, enquanto fura pela multidão – Jesus! Jesus!
- Sim, meu filho... De que mal sofres tu? Como te posso ajudar?
- Graças a Deus, quer dizer, a si. Ou ao seu Pai. Nunca percebi bem isso. Graça a Deus, pronto, não tenho nada de mal.
- Então porque vieste da Grécia, onde gozavas de fama, de sucesso...
- De mulheres!
- Não mintas Plínio, eu sou Jesus, eu sei tudo.
- Pois, já vi que sim – Responde Plínio – Então quer dizer que sabes, Jesus, porque aqui vim.
- Claro que sei.
- Então porque é que me perguntaste ainda agora porque vim?
- Queria saber se sabias, Plínio – Diz Jesus, do alto da sua sabedoria.
- Eu sei.
- Então, Plínio, diz-me...
- Não, não. Jesus primeiro. Senão depois eu digo e tu dizes: ah eu sabia.
- ...
- Eu não digo nada. Jesus primeiro.
- Queres por a tua barba à prova contra a minha, é Plínio?
- Nem mais. Afinal sabia mesmo.
- Não é essa a verdadeira razão – diz Jesus, apontando para o coração de Plínio - a verdadeira razão mora dentro do teu coração, por trás da muralha de pêlos. E é bom que a vejas o quanto antes.
- Não sei. Vamos lá ver como é que essa barba se aguenta.
- Plínio... Eu caminho sobre a água. Eu curo maleitas várias. Queres crer que me vences?
- Não, não sei se venço. Mas quero pôr-me à prova.
- Tudo bem, assim será, Plínio, que vença o melhor, se Deus quiser.
- Se Deus quiser não, porque é teu Pai e cheira-me que não será isento. Digo eu. Vamos chamar as coisas pelos nomes.
- ... Sigamos para o Monte, Plínio. Ah, e antes de irmos, vai tirar a multa da tua carroça.
- Mas qual mul... Oh não... Raios...
E lá foi Plínio a correr até à sua carroça. E tinha mesmo lá uma multa. Agora estava ainda mais motivado para a contenda de barbas. Melhores tempos viriam. Venceria Jesus, seria visto como tendo a melhor barba do mundo, e a glória esperava-o, no regresso a Roma.
Plínio caminho novamente para junto de Jesus, que lhe indicou um campo aberto, relvado, onde poderiam por as suas barbas à prova. A multidão seguia-os atentamente.
- Pois bem, Jesus - disse Plínio, confiante - será aqui o encontro final...
- Sim, poderá ser, Plínio. Mas diz-me, entretanto, já sabes a verdadeira razão pela qual vieste aqui?
- A barba, Jesus filho de Maria, a barba...
- Como queira, jovem Plínio. Quais as condições para a contenda?
- Ora bem Jesus - disse Plínio, enquanto caminhava pelo campo verde - eu estava a pensar em qualquer coisa que envolvesse cruzes e...
- Cruzes não! - interrompe Jesus - Não.
- Mas então, porquê?
- Cruzes, não...
- Ah então Jesus? Não me digas que tens medo.
- Não é isso... Cruzes, não.
- Está bem. Então e que tal, sei lá, assim uns espinhos? Ou uma lança?
- Plínio...
- Sim, Jesus...
- Esquece. Tenho uma ideia! E que tal fazermos a famosa competição da barba de ferro?
- Barba de ferro? - Questiona Plínio, intrigado - E como é que é isso?
- Ora bem. Muito simples: Prendemos as barbas um do outro. Traçamos uma linha no chão. Puxamos. O primeiro a ultrapassar a linha perde.
- Simples, mas eficaz. Bem pensado.
Traçaram um linha no chão e fizeram com que uma pessoa da multidão unisse as duas barbas. Contaram até três e começaram a puxar. A competição era feroz, e Plínio estava concentradíssimo. Jesus parecia mais forte, a barba estava a aguentar bem a pressão do peso de Plínio. A tensão sempre a subir e Plínio já com o pé sobre a linha, estava a perder, não havia maneira de ganhar. Até que...
- Olha uns romanos com uma cruz! - Exclama Plínio.
- Onde? - diz Jesus, olhando à volta com preocupação.
Aproveitando a desatenção, Plínio dá um forte puxão, fazendo com que Jesus atravesse a linha. A multidão rejubila. Plínio festeja efusivamente.
- Plínio, como tens coragem de enganar Jesus? - Inquire o Salvador, visivelmente desgostoso.
- Ora, JC, posso te chamar JC não é? É apenas uma competição JC, relaxa, e aprecia a minha barba.
- Não tens emenda, Plínio. Tens uma bela barba, admito. Mas, pensa bem nisto: qual é a força do teu coração?
- Do meu coração?
- Sim, Plínio, do teu coração. Sabes quem és, realmente?
- Talvez não... - admite Plínio, ligeiramente contrariado.
- Um conselho, jovem Plinio. Para voltares a Roma e obteres tudo o que desejas, tens de seguir para África, Plínio.
- África?
- Sim, Plínio, África? Terra dos desertos e das savanas, das selvas densas e de mil e um animais, terra do Mantorras e do...
- Do quem?
- Esquece Plínio. Segue para África e procura Cipião, o Africano.
- Cipião, o Africano?
- Nem mais. Verás que ele saberá mostrar-te quem és na realidade, antes de regressares a Roma. Agora parte, Plínio, e manda cumprimentos à tua mãe.
- Está bem, Jesus, obrigado pelo conselho.
- Não te esqueças que sei tudo.
- Então sabes que estão ali umas cruzes e uns centuriões, certamente.
- O quê?! - Jesus volta-se para trás, cheio de medo, para ver que não há cruzes nenhumas... - Plínio, vê-lá se não te cai um raio em cima!
Plínio riu-se, fez uma vénia ao salvador, agradeceu-lhe novamente e seguiu para a sua carroça. Algo lhe dizia para confiar em Jesus e para procurar o tal Cipião. Em África. Terra de leões.

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