IV - Varium Et Mutabile Semper Femina

Inconsciente do perigo que o esperava, Plínio caminhava para o interior da floresta mantendo sempre o olhar fixo naquela luz que brilhava por entre as folhas. A luz encontrava-se mais longe do que inicialmente tinha suposto, mas Plínio queria muito descansar e uma casa confortável era o melhor que lhe podiam dar. Enquanto andava, tentando não prender os pêlos nas silvas, Plínio pensava nas palavras de Sancto Geraldus. Gladiador, eu? Pensava para si mesmo, chegando rapidamente à conclusão que Sancto Geraldus devia ter tomado Strepsilus a mais, quando tinha dores de garganta. Efectivamente, a ideia de Plínio digladiar-se perante milhares de cidadão romanos e, pasme-se, do próprio Imperador César era, para ele, ridícula. Ainda assim, apesar de tudo indicar que era uma ideia descabida, Plínio sentia qualquer coisa de estranho na barriga quando pensava em ser gladiador. Da primeira vez que sentiu isso, pensou que tinha um nó nos pêlos, mas não. A sensação vinha directamente do seu âmago, do local mais fundo do seu ser. Apesar de Cardosus, o astrólogo, não lhe ter falado nada relativamente a essa hipótese, Plínio começava a ponderar se esse caminho seria uma alternativa, caso tudo o resto falhasse.
Os pensamentos de Plínio foram abruptamente interrompidos por um grito vindo do meio da floresta. Plínio parou e escondeu-se atrás de uma árvore. Como não conseguia ver nada, optou por uma pose sub-reptícia, para poder avançar sem ser detectado. Escorregadio que nem uma enguia do rio, Plínio serpenteava por entre as árvores, na tentativa de se inteirar do que se passava mais à frente. Até que de repente, do meio das árvores, surge um homem, seminu, a correr desenfreadamente, levando… Um raminho colado à cara:
- AHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH – grita o desconhecido.
- Acalme-se homem! – Intervém Plínio.
- Fuja, fuja enquanto pode! A loucura, a loucura!
- Tire o raminho da cara, não consigo perceber o que diz! – Grita Plínio, enquanto se estica para tirar o ramo da cara do fugitivo despido.
- Ah! Salvou-me a vida, mas, por favor, deixe-me ir! Deixe-me ir!
O homem, claramente perturbado, agarrou Plínio pelos pêlos do peito e puxou-o para si, ficando os dois cara a cara.
- Salve-se! Salve-se enquanto pode! A bruxa, ela, a bruxa, ela anda aí!
- Mas que bruxa, homem? Isso não existe!
- A bruxa! AHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH! – Disse o homem, enquanto fugia tresloucadamente para fora da floresta.
Plínio não acreditava em bruxas, mas, ainda assim, decidiu avançar cautelosamente pela floresta. Estava tudo calmo, agora que o louco desapareceu, e o sol já se tinha posto no horizonte, tornando a visibilidade bastante reduzida. A lua estava cheia e brilhava bastante, lançando alguns raios sepulcrais por entre as árvores. Plínio avançava cauteloso, mas sempre de olho na luz do meio da floresta.
Quando finalmente chegou junto à casa, tentou espreitar pela janela mas a única coisa que viu foram livros e uma lareira acesa. Perfeito, pensou Plínio para si mesmo e desta vez não hesitou em bater.
- Quem vem – responde uma voz esganiçada de dentro da casa, que, misteriosamente se transforma numa sensual voz feminina, doce mas rouca e prolongada – Quem vem lá?
- Plínio, Plínio Plagius, e procurava um pouco de compaixão.
A porta abre, e Plínio observa então uma atraente silhueta, claramente feminina. Quando o olhar se habitua finalmente à claridade, Plínio não consegue evitar um trôpego sorriso, um desajeitado riso e um abichanado piscar de olhos.
- Compaixão? Penso que tenha alguma ali dentro – diz a misteriosa rapariga, enquanto sorri para Plínio.
Plínio demorou a perceber que tinha sido uma piada, mas quando se apercebeu, soltou uma gargalhada violenta, como se fosse dominar o mundo, deixando a indefesa rapariga de pé atrás.
- Não te assustes – diz Plínio, atrapalhado – é apenas a minha forma de rir. Tudo bem que pareço que vou dominar o mundo, mas descansa, não tenho essas pretensões… – Plínio olha agora nos olhos da rapariga, sentindo se confiante, sentindo-se um leão – Apenas quero amar e ser amado…
- Entra, Plínio, o meu nome é Sofia.
- Ah, Sofia, sabedoria… É isso que procuro na minha viagem.
- Pois Plínio, acho que encontraste… - E, antes de fechar a porta, os olhos de Sofia iluminam-se na escuridão, e uns dentes vampíricos surgiram e recolheram-se. Plínio de nada desconfiava.
Entraram, e Sofia indicou a Plínio um local onde poderia descansar. Plínio recusou uma refeição, disse estar demasiado cansado para comer. E foi dormir. Plínio reparou que Sofia ficara a observá-lo, com um ar terno, enquanto este adormecia, mas o cansaço era tal que isso não o incomodou.
Já o sol entrava fulgurante pela janela quando Plínio despertou. A porta tinha sido aberta, era Sofia que voltava com uma cesta de frutas da floresta.
- Bom dia, Plínio, está um belo dia. Queres uma fruta?
- Bom dia… - boceja Plínio – se insistir em oferecer, sou capaz de aceitar – E voltou a rir como se fosse dominar o mundo.
Desta vez Sofia não se assustou e riu também, lançando uma maçã na sua direcção. Plínio apanhou-a e, sem conseguir disfarçar a fome, devorou a vorazmente.
- Plínio, diz-me – disse Sofia, tentadoramente – queres passar o dia comigo?
- Não posso… A Grécia espera-me.
- O que pode a Grécia oferecer que eu não possa?
- Não leves a mal, mas eu tenho mesmo que ir. É o meu destino.
- Vá lá, não sejas tímido. Só um dia comigo é tudo o que te peço.
Plínio sentia-se dividido. Mas algo o fez aceitar. Afinal de contas, era apenas um dia. Tinha esperado aqueles 16 anos, quase 17, para ir para a Grécia, um só dia não faria qualquer mal. Ficaram em casa para almoçar, e depois passaram a tarde sempre a conversar, sobre viagens, sobre livros (apesar de Plínio nem sequer saber ler…) e Plínio não conseguia evitar um envergonhado sorriso sempre que olhava para ela. Ao fim da tarde, Sofia prometeu levá-lo a um local especial. Saíram de casa e dirigiram-se para algo a que Sofia apelidava de “o meu lugar preferido”. Caminharam através da floresta, alternando os passos com conversas interessantes. Sofia parecia alguém muito especial. E Plínio estava claramente enfeitiçado por ela.
Quando chegaram ao local predilecto, Plínio ficou espantado com a beleza do local que o rodeava. Era um penhasco, com uma impressionante vista sobre o pôr-do-sol. Ficaram sentados na berma, a falar sobre a vida, em geral. Plínio apaixonadíssimo, lançava poesia pelo ar, poesia que tomava a forma de notas musicais e que deliciavam os ouvidos de Sofia. Foi aí que Plínio desejou saber escrever. Se fosse dotado desse dom, Plínio escreveria um texto, dizendo que dali por seis meses Sofia já não quereria saber dele. Era o lado derrotista de Plínio a vir ao de cima.
O Sol manchava de vermelho o puro azul do céu quando Sofia pôs a sua mão sobre a mão de Plínio. Sofia olhava nos olhos de Plinio, e quando pousou a mão, pensou tê-la pousado sobre um esquilo, mas um segundo olhar permitiu verificar que se tratava mesmo da mão de Plínio.
- Fecha os olhos, Plínio…
Plínio acedeu, e começou a esticar os lábios. Sofia afastou, horrorizada, a barba, e deu-lhe um beijo terno e prolongado. Plínio sentia-se no céu, mas algo interrompeu a sua felicidade. Sentiu algo a puxar-lhe o pé. Sem descolar os beijos de Sofia, Plínio olhou para baixo e viu um raminho a envolver-lhe primeiro o pé direito e logo de seguida o pé esquerdo. Afastou Sofia, assustado, e tentou debater-se com os raminhos. Quando olhou para Sofia, já os seus olhos brilhavam num vermelho sanguinário e os dentes vampíricos de fora, pronto a devorá-lo.
- O QUE SE PASSA?! – Grita Plínio, assustado.
Sofia ruge e levanta-se, agitando os braços, evocando um exército de raminhos insaciáveis, querendo deglutir a tenra carne do jovem Plínio.
- Os teus olhos, tens conjuntivite! E os teus dentes, isso é raiva! Afasta-te de mim, demónio contagioso! Aposto que tens micose!
Sofia soltou uma gargalhada demoníaca e disse:
- Plínio! Serás apenas mais um jantar para os meus raminhos, prepara-te para seres devorado!
E, mal Sofia terminou isto, Plínio foi completamente envolvido por um incontável número de raminhos, sendo posteriormente puxado para baixo, em direcção ao abismo.
Sofia esperou alguns minutos, enquanto ria, para depois puxar o emaranhado de raminhos onde estava Plínio. Quando desfez aquele caixão vivo, aquele túmulo arborizado, Sofia guinchou horrorizada: Não havia nenhum corpo. Aproximou-se da berma, à procura de Plínio, e eis que este, sem nada o fazer prever, surge nas suas costas:
- Mas… Como? Como! Não podes estar vivo! É… É impossível!
- Nem os teus raminhos conseguem penetrar nesta camada de pêlos.
- Não pode ser, não pode ser!
- Podes saber ler, podes ter viajado muito, podes ser uma besta sanguinária com micoses, mas nunca irás derrotar Plínio!
- Maldição! Maldição!
- Toma! – Grita Plínio, enquanto lança um pedaço de seitan na direcção da enorme e rasgada boca de Sofia. O pedaço daquela comida não identificada entrou na boca do monstro que, tal como Olívia, começou a sufocar. Plínio cruzou os braços e ficou a observar Sofia enquanto esta sufocava. Sofia tentou falar, por entre os pedaços de seitan que lhe entupiam as vias respiratórias:
- Plínio… Plínio, maldito sejas! Sobre ti lanço a pior das maldições! Ouve-me, Plínio – Dizia Sofia, por entre a tosse – Em todas as gerações, uma descendente minha e um descendente teu irão encontrar-se, e as minhas descendentes irão infernizar a vida dos teus, controlar as tuas conversas do MSN, e dar passeios de carro para ver o pôr-do-sol! E assim será feito! – Declarou Sofia, enquanto levava as mãos à garganta. Sem conseguir respirar, Sofia descaiu para trás e caiu sobre o monte de raminhos, que a engoliu de uma só vez. Plínio não entendia o que Sofia queria dizer com MSN, mas também não quis ficar para perguntar. Sem demoras, Plínio voltou a correr, tirou o Planetus Solitarius do bolso e, em andamento, consultou a direcção que tinha que tomar. Soube-lhe bem voltar a correr. E aí, lembrou-se de Sancto Geraldus. Lembrou-se das palavras dele. Talvez ele fosse mesmo um leão. Talvez fosse construído para lutar. Por enquanto não interessava. A Grécia era já ali ao lado.

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