II - Vade Mecum

Já com a sol por trás das costas, caminhando em direcção ao horizonte, Plinio deixa a sua mãe em lágrimas e parte com um nó no coração. O bairro Irenus parou para o ver partir, cada olhar acalentava secretamente a esperança de o ver voltar feito homem, mas poucos acreditavam em milagres. Plinio conteve as lágrimas, acenou uma só vez, um só movimento fluido e decidido e virou as costas. E agora, enquanto caminhava, Plinio recordava esses momentos. Sentia o ferrão da saudade cravado no seu peito. Mesmo a densa floresta de pêlos não podia impedir a saudade de o incomodar.
Apenas levou consigo um cantil com água, preparado pela sua mãe, um saco com bens úteis e um fragmento denominado Planetus Solitarius, que lhe indicava o caminho e as maravilhas todas naquele caminho entre Roma e a Grécia que era melhor conhecido como o Inter-Ralius. Plinio esteve até à última hora na dúvida, pois tinha ouvido falar do fragmento Spartacus. O nome era lhe familiar, e havia algo que lhe atraía, mas acabou por optar pelo Planetus Solitarius. Ele não sabia ler, mas o sistema de setas e a escassez de caminhos facilitavam-lhe a vida.
A travessia de Itália correu sem problemas de maior. Em noites de luar confundiam-no com um lobisomem, mas ele até já estava habituado. O caminho era feito metade a pé metade à boleia, em carroças. E metade das carroças até era ele próprio que puxava, tal a vontade que demonstrava em chegar ao seu destino. Sempre que, em conversa, contava a um estranho os seus planos, os seus sonhos, estes não conseguiam evitar um malicioso riso, pois duvidavam que alguém fosse perder o seu tempo em ensiná-lo a ler. Isto magoava-o profundamente, mas algo continuava a fazer com que ele continuasse. Afinal de contas, o vidente Cardosus tinha visto o futuro dele, e este futuro era indubitavelmente brilhante.
É curiosa a relação dele com a astrologia e as artes do oculto. Enquanto crescia, demonstrava um tremendo desprezo e desrespeito para com este tipo de artes. Além de não acreditar em nada, Plinio zombava de quem acreditava em tais trapaçarias. Mas, agora com 16 anos, Plinio era um fervoroso crente em tudo o que se relacionasse com o Cosmos. Era assim que ele gostava de apelidar aquela força mítica que ele acreditava que movia tudo à sua volta.
E talvez tenha sido o Cosmos que o levou a encontrá-la. Plinio caminhava à quatro dias sem parar, debaixo do calor do Sol e do frio da Lua. Já sem água no cantil e sem comer nada hà dois dias, Plinio desfaleceu em plena estrada romana. E foi ela que o encontrou e levou-o para sua casa. Quando Plinio acordou, estava deitado numa cama de palha, com uma rapariga sensivelmente da sua idade a olhar para ele.
- Onde estou? - murmurou Plinio.
- Descansa...
- Quem és tu?
- Agora não interessa, tens de descansar.. - disse, enquanto deu a Plinio mais um pouco de água.
Plinio voltou a adormecer. Teve um pesadelo, sonhou com a Grécia, sonhou que era gozado por todos devido a não saber ler. Sonhou com um leão. O leão olhou o nos olhos. Sentiu uma certa empatia, uma ligação fortíssima. Sentiu vontade de rugir. Mas, sem que nada o fizesse prever, o leão comeu-o, e Plinio acordou aos gritos. Mas não eram gritos de leão, eram mais gritos de uma criança de 3 anos a quem roubam o brinquedo preferido.
- Que se passa, estás bem?! - Inquiriu assustada.
- Estou bem - responde Plinio, ofegante - era apenas um pesadelo... Mas quem és tu?
- Chamo-me Olívia, e tu?
- Plinio. Plinio Plagius...
- Que estavas a fazer naquela estrada velha que ninguém usa, Plinio? Não és daqui, pois não?
- Não... Vim de Roma... Quero ir para a Grécia.
- Estás tão longe de casa... Deve haver um motivo muito forte para estares tão longe...
- Sim... Mas prefiro não falar disso... Porque me ajudaste, Olívia?
- Eu... Bem... Quando te vi na estrada, pensei que fosses um animal morto e aproximei-me de ti para te trazer para casa. Desculpa, mas a comida não é muito abundante por aqui e...
- Não faz mal...
- Apanhei o teu fragmento... Muito interessante...
- Tu sabes... Sabes lê-lo?
- Sim, tu não?
- Eu? Sim, claro, obviamente, por César, até leio ao contrário!
- ...
- Já agora, podes dar-me a tua opinião?
- Claro, sobre quê?
- Que caminho achas que deva tomar para Atenas?
- Deixa ver o teu guia... Olhando para ele, acho que devias tomar este - diz Olívia, enquanto aponta para o guia - Parece me bom. E deve ser, porque é o único.
- Ah. Certo. Só para confirmar. Bom! Já me sinto melhor, já posso seguir caminho!
- Seria melhor descansares mais algum tempo, Plinio, pareces fraco....
- Não, eu sou mesmo assim. Não te preocupes. Debaixo deste aparentemente débil corpo está uma força de leão e... - Plinio deteve-se no que ia a dizer... Recordou-se da imagem do leão, do olhar, da empatia. Da dentada. Do leão a cuspir os pêlos.
- Que se passa? Parece que viste um fantasma!
- Nada, está tudo bem - retorque Plinio, enquanto olha pela janela - O Sol ainda vai alto. Como prova da minha gratidão para contigo, vou preparar uma refeição para ti!
- Uma refeição? Não posso aceitar...
- Podes. Tenho uma dívida para contigo!
- Se é importante para ti, está bem.
Plinio perguntou o caminho para a cozinha e dirigiu-se para lá. Tirou da sua saca um pedaço de comida com um aspecto estranho, deixando Olívia perplexa.
- É Seitan, conheces?
- Nunca ouvi falar... Mas come-se?
- E bem! Come-se que nem um Cristão por um Leão! - Diz Plinio, enquanto solta umas valentes gargalhadas. Olívia afasta-se, amedrontada. É que nunca ninguém disse a Plinio que quando este se ri, parece que vai dominar o mundo. E também nunca lhe disseram que as piadas dele não têm qualquer tipo de piada. No bairro Irenus, quando alguém dizia uma piada que não arrancava qualquer tipo de reacção, diziam que essa pessoa estava armada em Plinio.
O Seitan, aquele estranho pedaço de sabe-se lá o quê com um aspecto horrendo estava pronto a ser servido.
- Anda Olívia, está pronto!
Plinio serviu o jantar. O resto é história. Passados trinta segundos Plinio já estava a duzentos metros da casa, a fugir desalmadamente, enquanto Olívia sufocava com o horrível Seitan. Foi aí que Plinio descobriu o terrível poder do Seitan. E prometeu apenas comer salsichas vegetarianas daí para a frente.

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